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19/04/2017 - Adoção tardia: famílias que preferem crianças mais velhas
18/04/2017
“Você é a cara do seu pai!” Quando Vitória, 6 anos, escuta uma frase como essa, imediatamente olha para seus pais, os jornalistas Renata e Fabiano*, em clima de cumplicidade. Ela sabe que não é filha da barriga. Sempre soube. E se lembra de tudo: do abrigo, dos amigos, da vida que tinha antes de ser adotada e ganhar uma nova família. Recorda-se, inclusive, da mãe biológica, que engravidou adolescente e, ao completar a maioridade, abandonou a filha no mesmo abrigo que a havia acolhido.
Vitória foi adotada com 4 anos, uma idade considerada avançada por muitos que enxergam na adoção uma possibilidade de construir família. Como já é de praxe, a maioria dos 34 mil pretendentes no Cadastro Nacional de Adoção (CNA) ainda procura um bebê, branco e saudável. Se for menina, melhor. Só para se ter uma ideia, 63,5% dos candidatos a pais querem um filho menor de 3 anos. Um desejo incompatível com a realidade dos abrigos. Hoje, das 6.289 crianças que esperam por um novo lar – e não têm impedimentos legais para serem adotadas –, 12% têm entre 3 e 7 anos e 79% são maiores de 7. Apenas 10% são brancas e 20% apresentam algum tipo de doença ou deficiência. Mas há uma boa notícia: nos últimos cinco anos, isso vem mudando.
Se em 2010, só 24% dos interessados estavam dispostos a adotar crianças com mais de 3 anos – desses, apenas 2,5% receberiam maiores de 7 –, hoje, esses números são outros. Subiu para 36,5% o número de adultos que aceitam meninos e meninas do primeiro grupo, sendo que 4,3% estão abertos a maiores de 7. É uma mudança ainda tímida, porém, significativa. E que tem a ver não exatamente com a compaixão pela má sorte dos mais velhos, mas com as necessidades e o estilo de vida das famílias, e suas novas configurações. “Há alguns anos, quase 100% dos pretendentes à adoção eram casais que haviam insistido durante anos em tratamentos para engravidar e desejavam um bebê. Hoje, como surgimento de novos modelos de famílias, os perfis procurados também estão se tornando mais ecléticos”, conta Monica Natale, gerente executiva do Grupo de Apoio à Adoção de São Paulo (Gaasp).
Para a socióloga Stella Christina Schrijnemaekers, professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, há não só uma transformação no perfil das famílias, mas uma tolerância maior por parte da sociedade em geral. “Hoje existe uma pluralidade de arranjos familiares, da mãe solteira ao casal homoafetivo, que podem ser assumidos e não são mais excluídos do processo de adoção. Houve uma mudança de paradigma na ideia de família. Não há mais o casal ideal nem a criança ideal.”
Além disso, há quem simplesmente não consiga mais enxergar um bebê em sua rotina pessoal e de trabalho – e todas as trocas de fraldas e noites maldormidas. Assim, uma criança que já tenha passado por essa fase que exige muitos cuidados parece mais apropriada para famílias que disponham de menos tempo ou que já tenham realizado o sonho de ter um recém-nascido em casa. “Em termos da psicologia e do desenvolvimento, essas crianças já têm uma noção mais completa de si mesmas. Falam em primeira pessoa, têm consciência de que são indivíduos e que já tinham uma história antes de serem adotadas”, explica a psicanalista Maria Luiza Ghirardi, membro fundador do Grupo Acesso, do Instituto Sedes Sapientiae (SP).
Perfil compatível
Era exatamente uma criança mais velha, que interagisse e brincasse, a primeira escolha de Fabiano. Mas a imagem que vinha à cabeça de sua mulher era a de um bebê. Apesar de sonhar com a adoção desde criança, Renata passou pelo calvário de grande parte dos pais adotivos. Perdeu uma filha, Laura, com 5 meses, em decorrência da prematuridade e de problemas cardíacos. Mais tarde, sofreu um aborto espontâneo e enfrentou uma séria depressão. A adoção havia se tornado o caminho mais natural. Porém, foi só durante o curso obrigatório para os interessados em adotar que Renata se abriu a novas possibilidades. “A juíza disse para refletirmos se um bebê se encaixava na nossa realidade atual. Sempre trabalhei muito e, quando pensei em acordar para trocar fralda e dar de mamar, me bateu um desânimo enorme. Até por conta de tudo o que havíamos enfrentado com a Laura na UTI, percebi que não estava mais disposta”, conta.
Tanto o curso como os grupos de adoção auxiliam as famílias a fazerem escolhas mais conscientes e que se encaixem em seus desejos e expectativas, independente de quais sejam eles. “A ideia é identificar que filho é esse que o casal quer e se a sua motivação está correta. Muitos querem que a criança reflita o que eles são. Essa não é uma boa razão para adotar”, explica Mônica, mãe de Alberto, 11, e Bruna, 6, ambos adotados ainda bebês. Por experiência própria, ela sabe que o filho precisa ser compatível como sonho do casal. É claro que não se deve ignorar a realidade dos abrigos, mas também não dá para fazer da adoção apenas uma bandeira. “Eu queria muito um bebê, queria trocar fralda, queria cheirar ‘neném’. Era importante para mim naquele momento.” E ela não se arrepende.
Isso não era uma questão para a corretora de imóveis Valéria Vaz, 47.Muito pelo contrário. Com um problema sério na coluna e duas filhas já adultas, ela sentia que tinha energia para ser mãe novamente, mas não possuía condições nem vontade de começar do zero. Hoje, além de Verônica, 26, e da enteada Carla, 24, ela é mãe de Miguel, 10, que chegou à família aos 7. Valéria ouviu falar do menino por um de seus clientes, que havia adotado dois irmãos e comentou sobre um garoto muito doce do abrigo. Na hora, ela decidiu que iria buscá-lo. “É tão inexplicável... Eu amei o Miguel de ouvir falar dele. Sem ver o rosto, sem saber se ele era branco, negro ou se tinha alguma doença”, conta.
A corretora rodou 300 quilômetros até o interior do Paraná muitas e muitas vezes para vê-lo, até poder levar o filho para casa, sete meses depois. Miguel, que se chamava Claudemir, chegou magro, com os dentes estragados e carregando o urso Bidu, uma das poucas lembranças que conserva da antiga vida.
É exatamente a memória que essas crianças trazem um dos fatores que mais pesam contra a adoção de maiores – o termo adoção tardia, para designar processos relacionados a meninos e meninas com mais de 3 anos, já não é usado, pois dá a falsa ideia de que há um tempo certo para adotar. “Às vezes, elas passaram por experiências de rupturas traumáticas, rejeição, violência, abandono. São situações que os adotantes devem conhecer, assim como saber das possibilidades de ajudar o filho a lidar comisso”, explica Maria Luiza.
Sombras do passado
Muitos temem que uma criança maior traga uma história anterior ou uma carga genética que possa despertar comportamentos indesejáveis no futuro. Mas uma pesquisa sueca publicada no periódico Proceedings of the National Academy of Science of United States mostrou que não é apenas a herança dos genes ou o passado que impacta no desenvolvimento das crianças: os estímulos do meio têm um papel igualmente fundamental. Os resultados mostraram que crianças que são adotadas têm um salto no desenvolvimento intelectual. Elas apresentaram, em média, um QI 4,4 pontos maior do que seus irmãos criados pelos pais biológicos. E mais: quanto maior o nível educacional dos pais adotivos, mais os filhos progrediram intelectualmente.
Ainda assim, durante o processo, os interessados têm acesso a todas as informações disponíveis sobre a criança, conhecem o histórico dos pais biológicos e podem tirar dúvidas, antes até do primeiro contato. Porém, mesmo sabendo de tudo isso, às vezes, é necessário readequar as altas expectativas – um ajuste que, muitas vezes, precisa ser feito mesmo com os filhos biológicos.
Quando os jornalistas Gilberto Scofield e Rodrigo Barbosa foram até Capelinha, cidade de 36 mil habitantes no nordeste de Minas Gerais, buscar o filho, não conseguiam imaginar como seria a convivência com o menino. O histórico de Paulo Henrique, na época com 4 anos, dizia que os pais biológicos não tinham condições de cuidar dele. Que ele havia sido rejeitado por três casais na primeira visita – duas vezes por ser considerado “feinho” e outra por ser “preto demais”. E que havia a suspeita de que tivesse síndrome alcoólica fetal, que pode causar malformações e atraso cognitivo, decorrente da ingestão de álcool na gestação. A vida antiga é um mistério, cuja única pista é a irmã mais velha, de 13 anos, que vive no abrigo e com quem Gilberto e Rodrigo se comprometeram a manter o vínculo. “Eu não sei o que ele viveu, ele não fala do passado, mas percebo que algo aconteceu envolvendo violência física. Ele tem uma memória ruim, não sei se isso é fruto de um passado que ele quer esquecer”, conta Gilberto.
É claro que cada criança lida com as lembranças à sua maneira. Na casa do produtor de programas infantis Alex Angelini, 47, onde adoção é regra, e não exceção, a experiência de cada um de seus quatro filhos, Rafael, 13, Alice, 13, Bruno, 12, e Carlos Eduardo, 8, é única. Enquanto uns reagiram com agressividade, outros preferiram falar sobre o assunto. “Todo mundo tem histórias difíceis, principalmente os mais velhos. Alice foi adotada primeiro por uma família que tinha dinheiro. Viajou para a Europa, mas era tratada como empregada. Chegou a ficar trancada, sem comida, e os vizinhos denunciaram os pais por maus-tratos.” Depois de ser abandonada em um shopping, só com uma mala de roupas, a menina foi encaminhada para o abrigo, onde ficou por seis meses antes de ser adotada por Alex. “Ela conta fácil tudo o que aconteceu, tem necessidade de compartilhar sua história comas pessoas”, explica o pai. E, apesar do passado cheio de dor, é a doçura em pessoa.
Alice foi a última a chegar à família, mas deveria ter sido a primeira. São tantas as coincidências e reviravoltas na família de Alex e sua mulher, Rosália, que a história até parece inventada. Quando a menina tinha 3 anos, o casal soube pela cunhada que a mãe biológica estava disposta a entregá-la para outra família criar – antes da elaboração do cadastro nacional, era comum que os interessados tratassem diretamente com os pais. No entanto, ao chegar na casa de Alice para buscá-la, descobriram que ela havia sido entregue a outra família. A mulher, então, propôs que levassem outro filho no lugar: Bruno, de 1 ano e 9 meses. Cinco anos depois, o garoto começou a insistir para ganhar um irmão e os pais entraram com os papéis, agora pelo CNA, para adotar mais duas crianças, sem restrições.
Quando a família completou dois anos na fila de espera, Bruno criou um amigo imaginário: Rafael. Ele falava tanto do “amigo” que a diretora da escola chegou a ligar para os pais para saber se tinham adotado mais uma criança. No Natal daquele ano, Bruno foi com os colegas de aula visitar um abrigo e levou presentes para um dos internos, que se chamava Carlos Eduardo. Três meses depois, a família recebeu uma ligação do fórum, falando de dois irmãos na fila de adoção, um de 7 anos e outro de 2. Era bem o que procuravam.
Na segunda visita à instituição, Bruno foi junto e reconheceu o mais novo dos irmãos: era Carlos Eduardo. E, por coincidência – ou destino –, o mais velho se chamava Rafael. Assim, eles se tornaram três. E, por obra do acaso, em 2015, dez anos depois da primeira adoção, a cunhada do começo da história soube que Alice, irmã de Bruno, estava no abrigo após ser abandonada pelos pais adotivos. Esse episódio de rejeição, e as consequências que ele podia ter despertado na garota, não foi suficiente para demovê-los da ideia: a família ia aumentar de novo.
Os obstáculos
Durante o processo de adaptação à nova família, é de praxe que as crianças passem por uma regressão, apresentando comportamentos infantilizados. Muitas voltam a falar como bebês, fazem xixi na cama e até se interessam por brinquedos feitos para os menores. “Inconscientemente, é uma vivência que visa experimentar etapas anteriores que ficaram defasadas, incompletas. É uma espécie de teste sobre o amor e a atenção desses novos pais e, ao mesmo tempo, uma busca para suprir um cuidado que não está satisfeito”, explica Maria Luiza.
Com Miguel, filho de Valéria, essa fase não durou muito. “Ele às vezes falava como bebê. Aí o pegava no colo, respondia como bebê, mas logo dizia que queria o mocinho de volta”, conta Valéria. Já Vitória teve necessidade de ‘mamar’. “Era um segredo meu e dela. Durou apenas alguns meses”, conta Renata. Não existe certo e errado: mães e filhos devem ir até o ponto em que se sentirem confortáveis. A psicanalista salienta que “a regressão é transitória, necessária e superável. O importante é que os adotantes estejam preparados para lidar com isso”.
E não só para esse tipo de comportamento. Um obstáculo comum na adoção de crianças maiores é a resistência que elas podem apresentar aos pais. “Quando o novo filho chega à família, ele quer saber o quanto é amado e querido. Por isso, pode fazer coisas estranhas, como bater no cachorro, riscar a cortina, gritar, empurrar. Faz parte”, conta Halia Paulia de Souza, voluntária há 18 anos na Vara da Infância de Curitiba (PR) e mãe de duas meninas adotadas. Isso porque as crianças precisam ter certeza de que as pessoas que estão ali querem mesmo ser seus pais, que não sofrerão nova rejeição.
Renata passou por esse processo. “Vitória não queria ser adotada. Ela se aproximou do Fabiano, mas, de mim, tinha horror. Acho que tinha esperanças de que a mãe dela voltasse. E se foi a mãe quem traiu sua confiança, por que eu não faria o mesmo?”, reflete. A menina gritava, saía correndo, se jogava no chão. “Eu pensava: ‘Entrei numa fria’. Mas nunca cogitei desistir. Afinal, eu sou a adulta, eu é que tinha procurado isso. Mas falava para o meu marido que a Vitória nunca ia me amar.”
Na casa de Alex, Rafael foi quem teve a adaptação mais complicada. “Ele veio de um ambiente de extrema violência e, por isso, era muito agressivo no começo. Chegou a enfiar um lápis nas costas do irmão”, lembra. Depois de passar por uma psicóloga, que o ajudou a lidar com os sentimentos, tudo foi se apaziguando.“ Hoje o Rafael é outra pessoa”, conta o pai. O grande desafio é dar limites e, ao mesmo tempo, não tirar da criança a sensação de que ela está sendo acolhida. E, nessa empreitada, encontrar um meio-termo não é tarefa simples. Facilita bastante se a família tiver o suporte de uma terapia no período de adaptação.
E, se por um lado a memória permite que as crianças maiores tenham clareza sobre seu passado e guardem lembranças dolorosas, por outro, a consciência de ser acolhido por novos pais é motivo de muita gratidão. Depois da resistência inicial – e da persistência de Renata –, Vitória diz sempre que ela é “a mãe que ela mais ama pela vida toda”. Valéria nem se lembra da vida antes de Miguel, que hoje ostenta bochechas gorduchas e um sorriso branquinho. Alice e Rafael se dão superbem com os pais e irmãos. E Paulo Henrique, o PH, é só sorrisos nas fotos com seus dois pais.
“Talvez, se fosse bebê, a adoção teria sido uma coisa mais instintiva. Por se tratar de uma criança maior, você precisa racionalizar a emoção: na construção da confiança, de pertencimento, de não passar que a história dela é só de abandono. Porque é uma história também de acolhimento”, resume Gilberto. Afinal, a adoção só acontece porque pais e crianças, independente da idade, têm um sonho em comum: formar uma nova família. E nunca é tarde demais para isso.
Fonte:
ANDI Comunicação e Direitos
Veículo: Revista Crescer
Acesse aqui
“Você é a cara do seu pai!” Quando Vitória, 6 anos, escuta uma frase como essa, imediatamente olha para seus pais, os jornalistas Renata e Fabiano*, em clima de cumplicidade. Ela sabe que não é filha da barriga. Sempre soube. E se lembra de tudo: do abrigo, dos amigos, da vida que tinha antes de ser adotada e ganhar uma nova família. Recorda-se, inclusive, da mãe biológica, que engravidou adolescente e, ao completar a maioridade, abandonou a filha no mesmo abrigo que a havia acolhido.
Vitória foi adotada com 4 anos, uma idade considerada avançada por muitos que enxergam na adoção uma possibilidade de construir família. Como já é de praxe, a maioria dos 34 mil pretendentes no Cadastro Nacional de Adoção (CNA) ainda procura um bebê, branco e saudável. Se for menina, melhor. Só para se ter uma ideia, 63,5% dos candidatos a pais querem um filho menor de 3 anos. Um desejo incompatível com a realidade dos abrigos. Hoje, das 6.289 crianças que esperam por um novo lar – e não têm impedimentos legais para serem adotadas –, 12% têm entre 3 e 7 anos e 79% são maiores de 7. Apenas 10% são brancas e 20% apresentam algum tipo de doença ou deficiência. Mas há uma boa notícia: nos últimos cinco anos, isso vem mudando.
Se em 2010, só 24% dos interessados estavam dispostos a adotar crianças com mais de 3 anos – desses, apenas 2,5% receberiam maiores de 7 –, hoje, esses números são outros. Subiu para 36,5% o número de adultos que aceitam meninos e meninas do primeiro grupo, sendo que 4,3% estão abertos a maiores de 7. É uma mudança ainda tímida, porém, significativa. E que tem a ver não exatamente com a compaixão pela má sorte dos mais velhos, mas com as necessidades e o estilo de vida das famílias, e suas novas configurações. “Há alguns anos, quase 100% dos pretendentes à adoção eram casais que haviam insistido durante anos em tratamentos para engravidar e desejavam um bebê. Hoje, como surgimento de novos modelos de famílias, os perfis procurados também estão se tornando mais ecléticos”, conta Monica Natale, gerente executiva do Grupo de Apoio à Adoção de São Paulo (Gaasp).
Para a socióloga Stella Christina Schrijnemaekers, professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, há não só uma transformação no perfil das famílias, mas uma tolerância maior por parte da sociedade em geral. “Hoje existe uma pluralidade de arranjos familiares, da mãe solteira ao casal homoafetivo, que podem ser assumidos e não são mais excluídos do processo de adoção. Houve uma mudança de paradigma na ideia de família. Não há mais o casal ideal nem a criança ideal.”
Além disso, há quem simplesmente não consiga mais enxergar um bebê em sua rotina pessoal e de trabalho – e todas as trocas de fraldas e noites maldormidas. Assim, uma criança que já tenha passado por essa fase que exige muitos cuidados parece mais apropriada para famílias que disponham de menos tempo ou que já tenham realizado o sonho de ter um recém-nascido em casa. “Em termos da psicologia e do desenvolvimento, essas crianças já têm uma noção mais completa de si mesmas. Falam em primeira pessoa, têm consciência de que são indivíduos e que já tinham uma história antes de serem adotadas”, explica a psicanalista Maria Luiza Ghirardi, membro fundador do Grupo Acesso, do Instituto Sedes Sapientiae (SP).
Perfil compatível
Era exatamente uma criança mais velha, que interagisse e brincasse, a primeira escolha de Fabiano. Mas a imagem que vinha à cabeça de sua mulher era a de um bebê. Apesar de sonhar com a adoção desde criança, Renata passou pelo calvário de grande parte dos pais adotivos. Perdeu uma filha, Laura, com 5 meses, em decorrência da prematuridade e de problemas cardíacos. Mais tarde, sofreu um aborto espontâneo e enfrentou uma séria depressão. A adoção havia se tornado o caminho mais natural. Porém, foi só durante o curso obrigatório para os interessados em adotar que Renata se abriu a novas possibilidades. “A juíza disse para refletirmos se um bebê se encaixava na nossa realidade atual. Sempre trabalhei muito e, quando pensei em acordar para trocar fralda e dar de mamar, me bateu um desânimo enorme. Até por conta de tudo o que havíamos enfrentado com a Laura na UTI, percebi que não estava mais disposta”, conta.
Tanto o curso como os grupos de adoção auxiliam as famílias a fazerem escolhas mais conscientes e que se encaixem em seus desejos e expectativas, independente de quais sejam eles. “A ideia é identificar que filho é esse que o casal quer e se a sua motivação está correta. Muitos querem que a criança reflita o que eles são. Essa não é uma boa razão para adotar”, explica Mônica, mãe de Alberto, 11, e Bruna, 6, ambos adotados ainda bebês. Por experiência própria, ela sabe que o filho precisa ser compatível como sonho do casal. É claro que não se deve ignorar a realidade dos abrigos, mas também não dá para fazer da adoção apenas uma bandeira. “Eu queria muito um bebê, queria trocar fralda, queria cheirar ‘neném’. Era importante para mim naquele momento.” E ela não se arrepende.
Isso não era uma questão para a corretora de imóveis Valéria Vaz, 47.Muito pelo contrário. Com um problema sério na coluna e duas filhas já adultas, ela sentia que tinha energia para ser mãe novamente, mas não possuía condições nem vontade de começar do zero. Hoje, além de Verônica, 26, e da enteada Carla, 24, ela é mãe de Miguel, 10, que chegou à família aos 7. Valéria ouviu falar do menino por um de seus clientes, que havia adotado dois irmãos e comentou sobre um garoto muito doce do abrigo. Na hora, ela decidiu que iria buscá-lo. “É tão inexplicável... Eu amei o Miguel de ouvir falar dele. Sem ver o rosto, sem saber se ele era branco, negro ou se tinha alguma doença”, conta.
A corretora rodou 300 quilômetros até o interior do Paraná muitas e muitas vezes para vê-lo, até poder levar o filho para casa, sete meses depois. Miguel, que se chamava Claudemir, chegou magro, com os dentes estragados e carregando o urso Bidu, uma das poucas lembranças que conserva da antiga vida.
É exatamente a memória que essas crianças trazem um dos fatores que mais pesam contra a adoção de maiores – o termo adoção tardia, para designar processos relacionados a meninos e meninas com mais de 3 anos, já não é usado, pois dá a falsa ideia de que há um tempo certo para adotar. “Às vezes, elas passaram por experiências de rupturas traumáticas, rejeição, violência, abandono. São situações que os adotantes devem conhecer, assim como saber das possibilidades de ajudar o filho a lidar comisso”, explica Maria Luiza.
Sombras do passado
Muitos temem que uma criança maior traga uma história anterior ou uma carga genética que possa despertar comportamentos indesejáveis no futuro. Mas uma pesquisa sueca publicada no periódico Proceedings of the National Academy of Science of United States mostrou que não é apenas a herança dos genes ou o passado que impacta no desenvolvimento das crianças: os estímulos do meio têm um papel igualmente fundamental. Os resultados mostraram que crianças que são adotadas têm um salto no desenvolvimento intelectual. Elas apresentaram, em média, um QI 4,4 pontos maior do que seus irmãos criados pelos pais biológicos. E mais: quanto maior o nível educacional dos pais adotivos, mais os filhos progrediram intelectualmente.
Ainda assim, durante o processo, os interessados têm acesso a todas as informações disponíveis sobre a criança, conhecem o histórico dos pais biológicos e podem tirar dúvidas, antes até do primeiro contato. Porém, mesmo sabendo de tudo isso, às vezes, é necessário readequar as altas expectativas – um ajuste que, muitas vezes, precisa ser feito mesmo com os filhos biológicos.
Quando os jornalistas Gilberto Scofield e Rodrigo Barbosa foram até Capelinha, cidade de 36 mil habitantes no nordeste de Minas Gerais, buscar o filho, não conseguiam imaginar como seria a convivência com o menino. O histórico de Paulo Henrique, na época com 4 anos, dizia que os pais biológicos não tinham condições de cuidar dele. Que ele havia sido rejeitado por três casais na primeira visita – duas vezes por ser considerado “feinho” e outra por ser “preto demais”. E que havia a suspeita de que tivesse síndrome alcoólica fetal, que pode causar malformações e atraso cognitivo, decorrente da ingestão de álcool na gestação. A vida antiga é um mistério, cuja única pista é a irmã mais velha, de 13 anos, que vive no abrigo e com quem Gilberto e Rodrigo se comprometeram a manter o vínculo. “Eu não sei o que ele viveu, ele não fala do passado, mas percebo que algo aconteceu envolvendo violência física. Ele tem uma memória ruim, não sei se isso é fruto de um passado que ele quer esquecer”, conta Gilberto.
É claro que cada criança lida com as lembranças à sua maneira. Na casa do produtor de programas infantis Alex Angelini, 47, onde adoção é regra, e não exceção, a experiência de cada um de seus quatro filhos, Rafael, 13, Alice, 13, Bruno, 12, e Carlos Eduardo, 8, é única. Enquanto uns reagiram com agressividade, outros preferiram falar sobre o assunto. “Todo mundo tem histórias difíceis, principalmente os mais velhos. Alice foi adotada primeiro por uma família que tinha dinheiro. Viajou para a Europa, mas era tratada como empregada. Chegou a ficar trancada, sem comida, e os vizinhos denunciaram os pais por maus-tratos.” Depois de ser abandonada em um shopping, só com uma mala de roupas, a menina foi encaminhada para o abrigo, onde ficou por seis meses antes de ser adotada por Alex. “Ela conta fácil tudo o que aconteceu, tem necessidade de compartilhar sua história comas pessoas”, explica o pai. E, apesar do passado cheio de dor, é a doçura em pessoa.
Alice foi a última a chegar à família, mas deveria ter sido a primeira. São tantas as coincidências e reviravoltas na família de Alex e sua mulher, Rosália, que a história até parece inventada. Quando a menina tinha 3 anos, o casal soube pela cunhada que a mãe biológica estava disposta a entregá-la para outra família criar – antes da elaboração do cadastro nacional, era comum que os interessados tratassem diretamente com os pais. No entanto, ao chegar na casa de Alice para buscá-la, descobriram que ela havia sido entregue a outra família. A mulher, então, propôs que levassem outro filho no lugar: Bruno, de 1 ano e 9 meses. Cinco anos depois, o garoto começou a insistir para ganhar um irmão e os pais entraram com os papéis, agora pelo CNA, para adotar mais duas crianças, sem restrições.
Quando a família completou dois anos na fila de espera, Bruno criou um amigo imaginário: Rafael. Ele falava tanto do “amigo” que a diretora da escola chegou a ligar para os pais para saber se tinham adotado mais uma criança. No Natal daquele ano, Bruno foi com os colegas de aula visitar um abrigo e levou presentes para um dos internos, que se chamava Carlos Eduardo. Três meses depois, a família recebeu uma ligação do fórum, falando de dois irmãos na fila de adoção, um de 7 anos e outro de 2. Era bem o que procuravam.
Na segunda visita à instituição, Bruno foi junto e reconheceu o mais novo dos irmãos: era Carlos Eduardo. E, por coincidência – ou destino –, o mais velho se chamava Rafael. Assim, eles se tornaram três. E, por obra do acaso, em 2015, dez anos depois da primeira adoção, a cunhada do começo da história soube que Alice, irmã de Bruno, estava no abrigo após ser abandonada pelos pais adotivos. Esse episódio de rejeição, e as consequências que ele podia ter despertado na garota, não foi suficiente para demovê-los da ideia: a família ia aumentar de novo.
Os obstáculos
Durante o processo de adaptação à nova família, é de praxe que as crianças passem por uma regressão, apresentando comportamentos infantilizados. Muitas voltam a falar como bebês, fazem xixi na cama e até se interessam por brinquedos feitos para os menores. “Inconscientemente, é uma vivência que visa experimentar etapas anteriores que ficaram defasadas, incompletas. É uma espécie de teste sobre o amor e a atenção desses novos pais e, ao mesmo tempo, uma busca para suprir um cuidado que não está satisfeito”, explica Maria Luiza.
Com Miguel, filho de Valéria, essa fase não durou muito. “Ele às vezes falava como bebê. Aí o pegava no colo, respondia como bebê, mas logo dizia que queria o mocinho de volta”, conta Valéria. Já Vitória teve necessidade de ‘mamar’. “Era um segredo meu e dela. Durou apenas alguns meses”, conta Renata. Não existe certo e errado: mães e filhos devem ir até o ponto em que se sentirem confortáveis. A psicanalista salienta que “a regressão é transitória, necessária e superável. O importante é que os adotantes estejam preparados para lidar com isso”.
E não só para esse tipo de comportamento. Um obstáculo comum na adoção de crianças maiores é a resistência que elas podem apresentar aos pais. “Quando o novo filho chega à família, ele quer saber o quanto é amado e querido. Por isso, pode fazer coisas estranhas, como bater no cachorro, riscar a cortina, gritar, empurrar. Faz parte”, conta Halia Paulia de Souza, voluntária há 18 anos na Vara da Infância de Curitiba (PR) e mãe de duas meninas adotadas. Isso porque as crianças precisam ter certeza de que as pessoas que estão ali querem mesmo ser seus pais, que não sofrerão nova rejeição.
Renata passou por esse processo. “Vitória não queria ser adotada. Ela se aproximou do Fabiano, mas, de mim, tinha horror. Acho que tinha esperanças de que a mãe dela voltasse. E se foi a mãe quem traiu sua confiança, por que eu não faria o mesmo?”, reflete. A menina gritava, saía correndo, se jogava no chão. “Eu pensava: ‘Entrei numa fria’. Mas nunca cogitei desistir. Afinal, eu sou a adulta, eu é que tinha procurado isso. Mas falava para o meu marido que a Vitória nunca ia me amar.”
Na casa de Alex, Rafael foi quem teve a adaptação mais complicada. “Ele veio de um ambiente de extrema violência e, por isso, era muito agressivo no começo. Chegou a enfiar um lápis nas costas do irmão”, lembra. Depois de passar por uma psicóloga, que o ajudou a lidar com os sentimentos, tudo foi se apaziguando.“ Hoje o Rafael é outra pessoa”, conta o pai. O grande desafio é dar limites e, ao mesmo tempo, não tirar da criança a sensação de que ela está sendo acolhida. E, nessa empreitada, encontrar um meio-termo não é tarefa simples. Facilita bastante se a família tiver o suporte de uma terapia no período de adaptação.
E, se por um lado a memória permite que as crianças maiores tenham clareza sobre seu passado e guardem lembranças dolorosas, por outro, a consciência de ser acolhido por novos pais é motivo de muita gratidão. Depois da resistência inicial – e da persistência de Renata –, Vitória diz sempre que ela é “a mãe que ela mais ama pela vida toda”. Valéria nem se lembra da vida antes de Miguel, que hoje ostenta bochechas gorduchas e um sorriso branquinho. Alice e Rafael se dão superbem com os pais e irmãos. E Paulo Henrique, o PH, é só sorrisos nas fotos com seus dois pais.
“Talvez, se fosse bebê, a adoção teria sido uma coisa mais instintiva. Por se tratar de uma criança maior, você precisa racionalizar a emoção: na construção da confiança, de pertencimento, de não passar que a história dela é só de abandono. Porque é uma história também de acolhimento”, resume Gilberto. Afinal, a adoção só acontece porque pais e crianças, independente da idade, têm um sonho em comum: formar uma nova família. E nunca é tarde demais para isso.
Fonte:
ANDI Comunicação e Direitos
Veículo: Revista Crescer
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