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16/09/2019 - Número de moradores em situação de rua deve alcançar maior nível da história em SP
15/09/2019
A prefeitura de São Paulo deve começar, nos próximos dias, a pesquisa censitária da população em situação de rua. A maior cidade do país – e também a mais rica – busca medidas para enfrentar o problema, que se agravou nos últimos anos.
O Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) estima que, hoje, cerca de 40 mil pessoas vivam nas ruas da metrópole. Um número alarmante se comparado com o último censo, em 2015, realizado pela Fundação de Pesquisas Econômicas (Fipe), quando foram registrados 15.905 habitantes.
“Esse estudo está defasado. Muita coisa mudou nos últimos quatro anos. A população de rua mais que dobrou”, afirma Edvaldo Gonçalves, coordenador estadual do MNPR.
Para o novo censo, a prefeitura contratou – por meio de licitação – a empresa Qualitest Inteligência em Pesquisa, situada no Espírito Santo. A mudança, segundo o Departamento de Comunicação do governo, teria sido motivada por uma decisão da gestão municipal.
A reportagem tentou entrevista com a secretária de Assistência e Desenvolvimento Social, Berenice Maria Giannella, mas teve o pedido negado. A assessoria não deu detalhes do processo licitatório alegando estar em fase de planejamento, mas garantiu que os trabalhos começam em outubro, com prazo de 9 meses.
Para essa primeira fase, foram contratados 90 profissionais, que serão divididos em dez equipes (cada uma com 8 pesquisadores e 1 supervisor). Número considerado insuficiente pelo coordenador da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo, padre Júlio Lancellotti. “Temos uma demanda de milhares de pessoas nas ruas, com rotinas e deslocamentos em várias regiões. O que pode afetar no desempenho da pesquisa”, disse.
Número de pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo:
2000 2009 2011 2015 2019*
8706 13666 14478 15905 ?
* Censo 2019 a ser elaborado pela Qualitest
O coordenador da pastoral acredita que, por dia, cerca de 30 novas pessoas chegam às ruas da capital. A maioria está há menos de um ano nessa situação. “Precisamos saber qual será o método desta nova pesquisa para fazermos um retrato aproximado dessa triste realidade”, afirma o padre Lancellotti.
Diante das dúvidas e da falta de informações transmitidas pela prefeitura, o Comitê da População de Rua da Cidade de São Paulo decidiu convocar, para a próxima segunda-feira (16), uma reunião extraordinária para pedir maior transparência no assunto.
“Queremos saber o por que da escolha de uma empresa no Espírito Santo, no valor de quase R$ 2 milhões”, questiona Lancellotti. A metodologia a ser aplicada, segundo ele, deve ser a mesma que foi utilizada anteriormente para se fazer as comparações técnicas.
O MNPR também não está satisfeito com a contratação e pretende reunir assinaturas para impugnar a ação da Qualitest. O movimento considera que a empresa é especializada na pesquisa de mercado. “Não houve uma conversa com os movimentos sociais. A prefeitura tomou a decisão sem comunicar as entidades que convivem com esse grupo vulnerável”, disse Gonçalves.
Os pesquisadores do censo consideram que população em situação de rua é toda e qualquer pessoa que durma em praças, calçadas, marquises, baixos de viaduto, terrenos baldios, cemitérios e carcaças de veículos.
Também estão inseridos neste grupo aqueles que pernoitam em albergues públicos ou em entidades sociais. Dos 15.905 moradores registrados em 2015, 8.570 encontravam-se nos serviços de acolhimento da prefeitura e outros 7.335 dormiam nas ruas e demais espaços públicos.
Ainda de acordo com o censo da Fipe, essa população é majoritariamente masculina - representando 84% - contra 16% das mulheres. Apesar do percentual menor, é importante lembrar que o grupo feminino apresenta um elevado grau de vulnerabilidade, uma vez que enfrenta situações de violência. Vale destacar que, naquele ano, 48% dos entrevistados se consideravam de cor parda, 27% branca e 22% preta. A maioria tinha entre 31 e 49 anos de idade. E a maior parte dessas pessoas vivia na região central (incluindo os distritos da Sé, Santa Cecília e República).
A última pesquisa revelou, ainda, que, entre 2000 e 2015, o crescimento da população de São Paulo foi de 0,7% enquanto que o total de pessoas em situação de rua crescia a 4,1%. O último censo populacional do Brasil, divulgado, em agosto deste ano, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostrou que a capital paulista é a mais populosa do país, com 12,2 milhões de habitantes, tendo 20% da população brasileira localizada em território paulistano. Esse número, claro, pode influenciar nos dados da próxima pesquisa censitária.
População da cidade de São Paulo e Pessoas em Situação de Rua (Fonte: IBGE/Fipe)
2000 2015 2019*
CIDADE 10,426,384 11,582,000 12,176,866
MORADORES DE RUA 8,706 15,905 ?
* Censo 2019 a ser elaborado pela Qualitest
A crise econômica que afeta o país também é um agravante. No segundo trimestre deste ano, o Brasil registrou 12,8 milhões de desempregados, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Muitos dos conflitos familiares são provocados por causa do desemprego. Sem dinheiro, a saída é ir para a rua.
Os ‘invisíveis’ da metrópole
Eles têm nome, RG e um único endereço: a rua. É nela onde dormem, se alimentam e fazem novos amigos. Uma relação tão intensa, que chega a ser confundida com a de uma família. A comparação não agrada à maioria, que diz estar ali por causa de conflitos familiares. No último censo, de 2015, realizado pela Fundação de Pesquisas Econômicas (Fipe) a pedido da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), constatou-se que 42% dos entrevistados decidiram ir para as ruas por causa de problemas com o pai, a mãe ou outro parente.
Foi o que aconteceu com G.J.S, 16 anos. O garoto fugiu de casa, em Ferraz de Vasconcelos, a 27 quilômetros de São Paulo, por não agüentar as agressões da mulher que ele evita chamar de mãe. O trajeto até a capital paulista foi longo. Dependeu das caronas na beira da estrada. Mas, na última segunda-feira (09), o menino moreno e franzino, logo, se enturmou com o primeiro grupo que viu pela frente.
É sob o Elevado Presidente João Goulart, o Minhocão, nas proximidades do metrô Marechal Deodoro, na região central, que o adolescente pretende viver os próximos dias. “Minha mãe me batia sem parar. Às vezes, sem motivo algum”, desabafa com olhar de revolta. Para ele, é melhor estar na rua do que apanhar dentro de casa. E é no novo lar improvisado, debaixo do Minhocão, que o menino recebe os primeiros sinais de afeto. É tratado como filho ou um irmão mais novo pela turma. Os companheiros de rua presenteiam o novato com cobertor, colchão e comida.
A entrevista é interrompida: “Ei, tio, me dá um cigarro aí”, exige o garoto. Com a negativa, fica agitado e balança a cabeça. Decide andar um pouco e, minutos depois, volta exibindo um cigarro na ponta da boca. Pergunto se ele tem sonho e, sem hesitar, o garoto responde: “ficar longe da minha mãe”.
Para Renata Bichir, coordenadora de pesquisa do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), instituição vinculada à Universidade de São Paulo-USP, é preciso entender as relações com as famílias. E a partir daí, desenvolver políticas públicas para esse grupo. “Não existe uma solução simples para convencer essas pessoas a voltarem para casa. Não podemos forçá-las. Ninguém vai querer voltar para um ambiente que sofre agressão”, afirma a pesquisadora.
Pierre Garramoni, 24, também é uma vítima da violência familiar. Está na rua há quatro anos. Fugiu de casa, em Carapicuíba, na região metropolitana de São Paulo, após ser violentamente espancado pelo pai. A mãe morreu, vítima de um câncer de pulmão, quando ele tinha apenas 6 anos.
“Não recebi nenhum carinho nem atenção do meu pai. Só me batia”, relembra o jovem.
Usuário de crack, o rapaz – que cursou até o nono ano do ensino fundamental – afirma que consome a droga, pelo menos, uma vez por semana. Confessa que já foi preso e que rouba – mas só de vez em quando. “Tem vezes que a vida te empurra e você não consegue se levantar”, comenta. Pierre é um moço bonito, de boa oratória e vaidoso. Ele conta que, por causa desses requisitos, conseguiu fazer alguns cursos técnicos oferecidos gratuitamente nas unidades de apoio ao morador em situação de rua.
“Tenho diploma de paisagista, de boas práticas e manipulação de alimentos e, também, de hotelaria”, diz orgulhoso. Ele é uma espécie de chefe do grupo. Todos o escutam - atentamente. Brinca com a turma, mas, quando pode, fala sério. “Nós somos invisíveis nessa sociedade. Somos a escória, os ladrões, os nóias. Falam pra mim que eu sou um marginal. Que eu não presto”, desabafa. O maior sonho deste jovem, que aprendeu a ser adulto prematuramente, é abrir uma empresa de paisagismo e comandar o próprio negócio. Já seu maior medo? “Morrer sozinho. Estou só neste mundo. Não tenho ninguém”, responde.
Ser invisível é, para esses moradores de rua, a maior prova de exclusão social. Das muitas pessoas que cruzam o caminho deles, diariamente, pouca gente percebe que estão ali – ou não quer enxergar. Edvaldo Gonçalves sabe bem o que é isso. Antes de ser coordenador do Movimento Nacional da População em Situação de Rua em São Paulo, viveu mais de 20 anos pelas ruas do Brasil. “A gente quer atenção. Existe uma porta de entrada. Mas onde está a saída?”, pergunta Gonçalves. O trabalho deste ex-morador de rua, de 50 anos, é lutar pelos direitos dessa população. “A gente não tira ninguém da rua. Não é obrigação do MNPR. É obrigação do Estado”, afirma.
Existe amor em SP
Se tem algo que o morador de rua não se preocupa é morrer de fome. Durante a reportagem, todos afirmaram fazer mais de três refeições por dia. Recebem, inclusive, lanche nos intervalos entre o almoço e o jantar. Comem com prazer toda a comida até o último grão. “Fico com a barriga cheia. Aqui, ninguém morre de fome”, grita um morador.
A ajuda vem de todos os lados. Tanto do governo, com os albergues e centros de apoio, como das organizações não-governamentais. A reportagem esteve, na última segunda-feira (09), na região do Elevado Presidente João Goulart, o Minhocão. Durante toda a noite, muita gente apareceu para oferecer o jantar. O grupo ‘Amor aos Moradores de Rua’ foi o primeiro a chegar, às 19h. Levou 30 marmitas com arroz, feijão, macarrão e frango desfiado, além de água e canjica para sobremesa. A pedagoga aposentada, Vania Chiminazzo, 68 anos, se emociona ao ver tanta alegria. “A gente sabe que não é a solução. Mas eles estão no fundo do poço e a gente quer dar um pouco de luz e amor para eles”, diz.
Os moradores de rua sabem exatamente a hora que chega a comida. Por várias vezes, a entrevista foi interrompida. “Espera um pouco, tio. Vamos na outra esquina pegar um rango”, comunica um deles.
Decido acompanhá-los e, logo, vejo todos ao redor de um carro, parado ao lado da estação de metrô Marechal Deodoro. Trinta voluntários do ‘Grupo Amar’, a maioria formada por nordestinos, distribuem 60 kits de comida. Tem pão com mortadela, biscoito recheado, café e suco. Além de um kit higiene com escova de dente, pasta e sabonete.
“As pessoas nos criticam e dizem que estamos estimulando a mendicância. É um pensamento egoísta, errado. Temos que ajudar sim”, diz a engenheira de vendas, Camila Souza, 30 anos. “São pessoas tão vulneráveis. Encontramos uma forma de dar dignidade a elas. E a solidariedade é a nossa única saída”, acrescenta.
Já passava das dez da noite quando outros três grupos de apoio se aproximaram e distribuíram mais comida e roupa para os moradores de rua. “A gente fica feliz quando um estranho vem cheio de carinho e oferece tanta coisa boa. Não tô falando de comida. Tô falando de amor”, disse a carioca Raphaella, 29, há mais de dez anos nas ruas de São Paulo.
Fonte:
Yahoo Notícias
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O Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR) estima que, hoje, cerca de 40 mil pessoas vivam nas ruas da metrópole. Um número alarmante se comparado com o último censo, em 2015, realizado pela Fundação de Pesquisas Econômicas (Fipe), quando foram registrados 15.905 habitantes.
“Esse estudo está defasado. Muita coisa mudou nos últimos quatro anos. A população de rua mais que dobrou”, afirma Edvaldo Gonçalves, coordenador estadual do MNPR.
Para o novo censo, a prefeitura contratou – por meio de licitação – a empresa Qualitest Inteligência em Pesquisa, situada no Espírito Santo. A mudança, segundo o Departamento de Comunicação do governo, teria sido motivada por uma decisão da gestão municipal.
A reportagem tentou entrevista com a secretária de Assistência e Desenvolvimento Social, Berenice Maria Giannella, mas teve o pedido negado. A assessoria não deu detalhes do processo licitatório alegando estar em fase de planejamento, mas garantiu que os trabalhos começam em outubro, com prazo de 9 meses.
Para essa primeira fase, foram contratados 90 profissionais, que serão divididos em dez equipes (cada uma com 8 pesquisadores e 1 supervisor). Número considerado insuficiente pelo coordenador da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo, padre Júlio Lancellotti. “Temos uma demanda de milhares de pessoas nas ruas, com rotinas e deslocamentos em várias regiões. O que pode afetar no desempenho da pesquisa”, disse.
Número de pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo:
2000 2009 2011 2015 2019*
8706 13666 14478 15905 ?
* Censo 2019 a ser elaborado pela Qualitest
O coordenador da pastoral acredita que, por dia, cerca de 30 novas pessoas chegam às ruas da capital. A maioria está há menos de um ano nessa situação. “Precisamos saber qual será o método desta nova pesquisa para fazermos um retrato aproximado dessa triste realidade”, afirma o padre Lancellotti.
Diante das dúvidas e da falta de informações transmitidas pela prefeitura, o Comitê da População de Rua da Cidade de São Paulo decidiu convocar, para a próxima segunda-feira (16), uma reunião extraordinária para pedir maior transparência no assunto.
“Queremos saber o por que da escolha de uma empresa no Espírito Santo, no valor de quase R$ 2 milhões”, questiona Lancellotti. A metodologia a ser aplicada, segundo ele, deve ser a mesma que foi utilizada anteriormente para se fazer as comparações técnicas.
O MNPR também não está satisfeito com a contratação e pretende reunir assinaturas para impugnar a ação da Qualitest. O movimento considera que a empresa é especializada na pesquisa de mercado. “Não houve uma conversa com os movimentos sociais. A prefeitura tomou a decisão sem comunicar as entidades que convivem com esse grupo vulnerável”, disse Gonçalves.
Os pesquisadores do censo consideram que população em situação de rua é toda e qualquer pessoa que durma em praças, calçadas, marquises, baixos de viaduto, terrenos baldios, cemitérios e carcaças de veículos.
Também estão inseridos neste grupo aqueles que pernoitam em albergues públicos ou em entidades sociais. Dos 15.905 moradores registrados em 2015, 8.570 encontravam-se nos serviços de acolhimento da prefeitura e outros 7.335 dormiam nas ruas e demais espaços públicos.
Ainda de acordo com o censo da Fipe, essa população é majoritariamente masculina - representando 84% - contra 16% das mulheres. Apesar do percentual menor, é importante lembrar que o grupo feminino apresenta um elevado grau de vulnerabilidade, uma vez que enfrenta situações de violência. Vale destacar que, naquele ano, 48% dos entrevistados se consideravam de cor parda, 27% branca e 22% preta. A maioria tinha entre 31 e 49 anos de idade. E a maior parte dessas pessoas vivia na região central (incluindo os distritos da Sé, Santa Cecília e República).
A última pesquisa revelou, ainda, que, entre 2000 e 2015, o crescimento da população de São Paulo foi de 0,7% enquanto que o total de pessoas em situação de rua crescia a 4,1%. O último censo populacional do Brasil, divulgado, em agosto deste ano, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostrou que a capital paulista é a mais populosa do país, com 12,2 milhões de habitantes, tendo 20% da população brasileira localizada em território paulistano. Esse número, claro, pode influenciar nos dados da próxima pesquisa censitária.
População da cidade de São Paulo e Pessoas em Situação de Rua (Fonte: IBGE/Fipe)
2000 2015 2019*
CIDADE 10,426,384 11,582,000 12,176,866
MORADORES DE RUA 8,706 15,905 ?
* Censo 2019 a ser elaborado pela Qualitest
A crise econômica que afeta o país também é um agravante. No segundo trimestre deste ano, o Brasil registrou 12,8 milhões de desempregados, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Muitos dos conflitos familiares são provocados por causa do desemprego. Sem dinheiro, a saída é ir para a rua.
Os ‘invisíveis’ da metrópole
Eles têm nome, RG e um único endereço: a rua. É nela onde dormem, se alimentam e fazem novos amigos. Uma relação tão intensa, que chega a ser confundida com a de uma família. A comparação não agrada à maioria, que diz estar ali por causa de conflitos familiares. No último censo, de 2015, realizado pela Fundação de Pesquisas Econômicas (Fipe) a pedido da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), constatou-se que 42% dos entrevistados decidiram ir para as ruas por causa de problemas com o pai, a mãe ou outro parente.
Foi o que aconteceu com G.J.S, 16 anos. O garoto fugiu de casa, em Ferraz de Vasconcelos, a 27 quilômetros de São Paulo, por não agüentar as agressões da mulher que ele evita chamar de mãe. O trajeto até a capital paulista foi longo. Dependeu das caronas na beira da estrada. Mas, na última segunda-feira (09), o menino moreno e franzino, logo, se enturmou com o primeiro grupo que viu pela frente.
É sob o Elevado Presidente João Goulart, o Minhocão, nas proximidades do metrô Marechal Deodoro, na região central, que o adolescente pretende viver os próximos dias. “Minha mãe me batia sem parar. Às vezes, sem motivo algum”, desabafa com olhar de revolta. Para ele, é melhor estar na rua do que apanhar dentro de casa. E é no novo lar improvisado, debaixo do Minhocão, que o menino recebe os primeiros sinais de afeto. É tratado como filho ou um irmão mais novo pela turma. Os companheiros de rua presenteiam o novato com cobertor, colchão e comida.
A entrevista é interrompida: “Ei, tio, me dá um cigarro aí”, exige o garoto. Com a negativa, fica agitado e balança a cabeça. Decide andar um pouco e, minutos depois, volta exibindo um cigarro na ponta da boca. Pergunto se ele tem sonho e, sem hesitar, o garoto responde: “ficar longe da minha mãe”.
Para Renata Bichir, coordenadora de pesquisa do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), instituição vinculada à Universidade de São Paulo-USP, é preciso entender as relações com as famílias. E a partir daí, desenvolver políticas públicas para esse grupo. “Não existe uma solução simples para convencer essas pessoas a voltarem para casa. Não podemos forçá-las. Ninguém vai querer voltar para um ambiente que sofre agressão”, afirma a pesquisadora.
Pierre Garramoni, 24, também é uma vítima da violência familiar. Está na rua há quatro anos. Fugiu de casa, em Carapicuíba, na região metropolitana de São Paulo, após ser violentamente espancado pelo pai. A mãe morreu, vítima de um câncer de pulmão, quando ele tinha apenas 6 anos.
“Não recebi nenhum carinho nem atenção do meu pai. Só me batia”, relembra o jovem.
Usuário de crack, o rapaz – que cursou até o nono ano do ensino fundamental – afirma que consome a droga, pelo menos, uma vez por semana. Confessa que já foi preso e que rouba – mas só de vez em quando. “Tem vezes que a vida te empurra e você não consegue se levantar”, comenta. Pierre é um moço bonito, de boa oratória e vaidoso. Ele conta que, por causa desses requisitos, conseguiu fazer alguns cursos técnicos oferecidos gratuitamente nas unidades de apoio ao morador em situação de rua.
“Tenho diploma de paisagista, de boas práticas e manipulação de alimentos e, também, de hotelaria”, diz orgulhoso. Ele é uma espécie de chefe do grupo. Todos o escutam - atentamente. Brinca com a turma, mas, quando pode, fala sério. “Nós somos invisíveis nessa sociedade. Somos a escória, os ladrões, os nóias. Falam pra mim que eu sou um marginal. Que eu não presto”, desabafa. O maior sonho deste jovem, que aprendeu a ser adulto prematuramente, é abrir uma empresa de paisagismo e comandar o próprio negócio. Já seu maior medo? “Morrer sozinho. Estou só neste mundo. Não tenho ninguém”, responde.
Ser invisível é, para esses moradores de rua, a maior prova de exclusão social. Das muitas pessoas que cruzam o caminho deles, diariamente, pouca gente percebe que estão ali – ou não quer enxergar. Edvaldo Gonçalves sabe bem o que é isso. Antes de ser coordenador do Movimento Nacional da População em Situação de Rua em São Paulo, viveu mais de 20 anos pelas ruas do Brasil. “A gente quer atenção. Existe uma porta de entrada. Mas onde está a saída?”, pergunta Gonçalves. O trabalho deste ex-morador de rua, de 50 anos, é lutar pelos direitos dessa população. “A gente não tira ninguém da rua. Não é obrigação do MNPR. É obrigação do Estado”, afirma.
Existe amor em SP
Se tem algo que o morador de rua não se preocupa é morrer de fome. Durante a reportagem, todos afirmaram fazer mais de três refeições por dia. Recebem, inclusive, lanche nos intervalos entre o almoço e o jantar. Comem com prazer toda a comida até o último grão. “Fico com a barriga cheia. Aqui, ninguém morre de fome”, grita um morador.
A ajuda vem de todos os lados. Tanto do governo, com os albergues e centros de apoio, como das organizações não-governamentais. A reportagem esteve, na última segunda-feira (09), na região do Elevado Presidente João Goulart, o Minhocão. Durante toda a noite, muita gente apareceu para oferecer o jantar. O grupo ‘Amor aos Moradores de Rua’ foi o primeiro a chegar, às 19h. Levou 30 marmitas com arroz, feijão, macarrão e frango desfiado, além de água e canjica para sobremesa. A pedagoga aposentada, Vania Chiminazzo, 68 anos, se emociona ao ver tanta alegria. “A gente sabe que não é a solução. Mas eles estão no fundo do poço e a gente quer dar um pouco de luz e amor para eles”, diz.
Os moradores de rua sabem exatamente a hora que chega a comida. Por várias vezes, a entrevista foi interrompida. “Espera um pouco, tio. Vamos na outra esquina pegar um rango”, comunica um deles.
Decido acompanhá-los e, logo, vejo todos ao redor de um carro, parado ao lado da estação de metrô Marechal Deodoro. Trinta voluntários do ‘Grupo Amar’, a maioria formada por nordestinos, distribuem 60 kits de comida. Tem pão com mortadela, biscoito recheado, café e suco. Além de um kit higiene com escova de dente, pasta e sabonete.
“As pessoas nos criticam e dizem que estamos estimulando a mendicância. É um pensamento egoísta, errado. Temos que ajudar sim”, diz a engenheira de vendas, Camila Souza, 30 anos. “São pessoas tão vulneráveis. Encontramos uma forma de dar dignidade a elas. E a solidariedade é a nossa única saída”, acrescenta.
Já passava das dez da noite quando outros três grupos de apoio se aproximaram e distribuíram mais comida e roupa para os moradores de rua. “A gente fica feliz quando um estranho vem cheio de carinho e oferece tanta coisa boa. Não tô falando de comida. Tô falando de amor”, disse a carioca Raphaella, 29, há mais de dez anos nas ruas de São Paulo.
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