Notícias

16/04/2020 - Brasil é o 4° país no mundo em casos de casamento infantil

14/04/2020
 
O casamento infantil é definido pela ONU como “uma união formal ou informal antes dos 18 anos”, e essa prática é uma violação de direitos humanos que afeta principalmente as meninas. Conheça relatos de mulheres que se casaram e tiveram filhos quando ainda eram adolescentes e que contam como isso afetou suas vidas.
 
Por: Isabela Alves

Em números absolutos, o Brasil ocupa a quarta posição no ranking internacional de casos de casamento infantil e está entre os cinco países da América Latina e Caribe com maior incidência de casos. Os dados constam na pesquisa ‘Tirando o Véu: estudo sobre casamento infantil no Brasil’, realizada pela Plan Internacional Brasil. 

O casamento infantil é definido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como “uma união formal ou informal antes dos 18 anos”, e essa prática é uma violação de direitos humanos que afeta principalmente as meninas.

“Temos um problema com o termo casamento infantil no Brasil, pois, no imaginário da população, depois da menstruação as meninas já são vistas como adultas. Quando submetidas ao casamento infantil, elas passam por muitas transformações, tanto no psicológico, quanto no corpo”, explica Viviana Santiago, gerente de gênero e incidência política da Plan Internacional Brasil.

Apesar do casamento infantil ser tratado como um tema distante da realidade brasileira, os números afirmam o oposto: de acordo com um relatório produzido pelo Banco Mundial, essa realidade atinge mais de 554 mil meninas de 10 a 17 anos no Brasil, sendo que mais de 65 mil delas se casam entre 10 e 14 anos de idade. 

É importante ressaltar que a prática de ato libidinoso ou sexo com menores de 14 anos é considerada crime de estupro de vulnerável no país. A pena, definida pelo Superior Tribunal de Justiça, é de 8 a 15 anos de prisão. O casamento com menores de 16 anos também é proibido no Brasil desde fevereiro de 2019. 

Apesar destas leis, esses casamentos continuam acontecendo. Segundo Viviana, “quando a menina vive em situação de pobreza, ela enxerga o casamento como uma forma de mobilidade social. Em casos de perda da virgindade ou gravidez, o casamento aparece como uma maneira de recuperar a honra. Quando a menina vive em um lar de grande violência doméstica, ela sai de casa em busca de emancipação. Ainda, nos casos religiosos, a menina se casa por conta do dogma em relação ao sexo”.

A especialista também aponta que, ao se casarem, as meninas têm que arcar com muitas responsabilidades sem terem preparo para isso, como cuidar da casa e dos filhos. Elas também tendem a depender economicamente do parceiro e por isso são as mais vulneráveis à violência física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. 

Em casos ainda mais graves, elas podem chegar a ficar em situação de cárcere privado, já que os parceiros proíbem visitas a familiares e amigos, por conta do ciúme. “É uma relação assimétrica, pois é uma criança se casando com um adulto. Alguns homens preferem as meninas mais novas, porque elas têm menos poder, obedecem facilmente e não podem negociar os seus direitos”, afirma Viviana. 


UMA VIDA MARCADA PELO ABANDONO 

Maria José Ferreira diz que não teve infância. Criada pelos avós no interior do Rio Grande do Norte, ela foi abandonada assim que nasceu pela própria mãe, que a teve aos 18 anos. Aos 10 anos, Maria José já tinha muitas responsabilidades. A avó adoeceu com problemas cardíacos e ela passou a cuidar dela no hospital. 

O casamento apareceu na sua vida como uma solução diante de tanto sofrimento. Casou-se aos 13 anos. Aos 14, deu à luz sua primeira filha. “Devido eu nunca ter tido carinho e amor, eu arrumei um namorado e de imediato fui morar com ele. Em 2 de agosto de 1998, minha avó faleceu e eu já estava com dois meses de gravidez”, conta. 

Quando se casou, o seu marido tinha 26 anos. Maria José relata que era tão inocente na época que acreditava que o casamento havia sido a melhor coisa que havia lhe acontecido, assim como a gravidez. “Quando eu engravidei, o médico disse: ‘uma criança vai ter outra criança’. Eu tive minha filha no dia 11 de março e no outro dia era o meu aniversário de 14 anos”. 

No entanto, do ponto de vista físico, seu corpo não estava preparado e no momento do parto teve sérias complicações. Maria teve o início de pré-eclâmpsia, que ocorre quando uma mulher grávida fica com a pressão arterial elevada. Muito religiosa, ela acredita que Deus e Nossa Senhora dos Remédios intercederam pela sua vida e a salvaram da morte.

“O médico me disse ‘ou vai ser a sua vida ou a da sua filha’, e eu escolhi que ela vivesse. Eu fiz uma oração e prometi que, se eu e ela saíssemos com vida do hospital, eu ia a batizar com o nome da santa”, relata emocionada. Sua filha foi batizada como Maria dos Remédios. 

Apesar do quadro de risco, ela não chegou a ser internada na Unidade de Tratamento Intensivo (UTI), mas passou oito dias em observação. Nesse momento tão delicado e de tanta angústia, ela não recebeu nenhuma visita no hospital. Os médicos e enfermeiros foram as únicas companhias que lhe deram apoio. O pai da menina estava desempregado e não tinha dinheiro para ir vê-la. 

A experiência como mãe foi como brincar de boneca. Era um momento de muita felicidade, porque ela sabia que não estava mais sozinha neste mundo. Em contrapartida, o seu casamento se transformou em um relacionamento abusivo. O marido passou a lhe bater sem nenhum motivo. 

Em julho de 2002, Maria José descobriu que estava grávida da segunda filha. Por medo, ela não se separou do marido e teve que suportar vários tipos de violência – física, psicológica e patrimonial. Foi a época mais difícil da sua vida, porque além de ter que suportar a violência frequente, sua família chegou a passar fome, já que o marido tornou-se alcoólatra, deixou de trabalhar e passou a jogar baralho. 

Posteriormente, Maria José conseguiu um emprego na escola onde a filha mais nova, então com três anos, estudava. Tudo o que ganhava era para comprar comida, roupas e calçados para as suas filhas. Quando começou a trabalhar, o marido não batia mais nela, mas continuava a beber muito. 

Em 2014, a filha mais nova, que estava com 12 anos, passou mal durante a aula e a diretora do colégio chamou Maria José. A menina havia tido uma crise de epilepsia. Chegando ao hospital, o médico disse que aquilo ocorreu em razão de algo que estava acontecendo dentro de casa.

“O pai bebia todas as noites e bagunçava durante o dia em casa. Em 2015, eu tomei a coragem de me separar, mas até hoje carrego uma dor no peito muito grande, porque a minha filha mais velha não aceitou a separação. Faz cinco anos que estou divorciada e também faz cinco anos que a minha filha não fala mais comigo”. O casamento durou 17 anos. 

Sua filha mais velha casou-se aos 14 anos, mas o seu primeiro relacionamento só durou seis meses. Ela não quis voltar para casa, então foi morar com o tio por um tempo. Atualmente, ela está casada com outra pessoa.

“Quando ela me vê na calçada, muda a direção. No começo eu sofri e chorava muito. Já procurei ela várias vezes e ela não quer mesmo nada comigo. Hoje em dia, já desisti e entendi que não há nada mais que eu possa fazer”, conta. 

Hoje, aos 35 anos, Maria José trabalha como cuidadora de idosos. Se pudesse mudar algo no passado, ela conta que teria focado nos estudos ao invés de se casar. “Apesar de tudo o que eu passei, sou grata por tudo. Isso me fortaleceu. Mas, olhando para trás, passei por tudo isso porque queria carinho e atenção, coisas que nunca tive em toda a minha vida”, conclui. 


INOCÊNCIA PERDIDA

Quando pequena, Márcia Farre morava em um bairro de classe média alta na zona norte de São Paulo. Apesar de nunca ter passado por problemas financeiros, ela conta que sempre sofreu por não ter diálogo com os pais. Quando chegou à adolescência, essa situação tornou-se um problema. 

“Eles não gostavam de muita aproximação com ninguém. Até quando eu dava um beijo cumprimentando algum conhecido, eles achavam horrível. Então, imagina se eu falasse que tinha beijado um menino?”, conta. 

Muito solitária, ela passou a escrever em um diário sobre o seu dia a dia. Além de escrever que estava apaixonada por um menino da sua rua, muitas páginas diziam coisas ruins sobre os seus pais. No dia em que eles leram o conteúdo, passaram a tratá-la ainda mais friamente. 

Como o pai era o único responsável pela renda familiar, ela convivia mais com a sua mãe. No entanto, a relação era terrível, porque Márcia apanhava muito e sem motivo.

“Quando meu pai se casou com a minha mãe, ele tinha 25 e ela 15, então ela não se desenvolveu psicologicamente. Do jeito que ela casou, ela ficou com a mentalidade de 15 anos. Ela era muito sobrecarregada com as tarefas de casa e eu sempre a via chorando pelos cantos. Até hoje ela é super frustrada e sempre está de mau humor”, conta. 

Um ano após a descoberta do diário, ela conheceu o homem que se tornaria o seu marido. Ela relembra que, no início do namoro, eles realizaram uma viagem para a praia, e que nesse dia sofreu um de seus maiores traumas: o homem forçou o ato sexual. “Eu era jovem e inocente demais para compreender, mas aquilo foi um estupro. Ele insistiu e fez sem a minha permissão, e aí eu engravidei e acabei casando”, diz.

Márcia tinha 16 e seu marido, 17. Mesmo casado, ele viajava e ia para festas sem ela. Em pouco tempo, Márcia passou a sofrer violência doméstica e, apesar de contar para a sua mãe o que estava acontecendo, não teve nenhum apoio. Conseguiu se divorciar após dois anos, quando conseguiu um emprego na Transbrasil, companhia aérea que encerrou as atividades em 2001.

“Eu me transformei na minha mãe. Eu amamentava, cuidava da casa e ainda apanhava quando queria fazer alguma coisa. Cheguei a apanhar de ter que proteger a cabeça da minha filha, porque o meu marido estava me chutando”, conta com tristeza. 

Assim como sua mãe fazia, Márcia acabou descontando suas frustrações na filha e isso afetou diretamente o relacionamento das duas.

Em 2005, Márcia se mudou para Dubai com a filha, então com 9 anos, na tentativa de ter uma nova vida e fortalecer os laços. Mas há três anos a filha disse que voltaria para o Brasil para viver com o pai. Márcia e ela voltaram para o país e elas deixaram de se falar. Para Márcia, esse foi o maior baque de sua vida.

Hoje, Márcia faz terapia para lidar com a distância entre ela e a filha e seu novo estilo de vida, e se dedica à faculdade de Farmácia. Aos 41 anos, ela conta que está fazendo algo que nunca fez durante toda a sua vida: cuidar de si mesma. 

“Parem de normalizar que mulher tem que casar cedo e que ela dá conta de tudo, porque a minha vida foi muito difícil. Foi muito choro e muita briga. A maior burrice é desperdiçar a vida tendo uma família ruim. Nem todo mundo tem psicológico para ser mãe”, conclui.


DOCUMENTÁRIO SOBRE CASAMENTO INFANTIL

Em 2018, a Plan Internacional Brasil lançou o documentário ‘Casamento Infantil’. A produção, gravada em São Paulo (SP) e Codó (MA), traz casos de casamento infantil na perspectiva de diferentes realidades do Brasil. “A intenção é mostrar que, mesmo em contextos diferentes, as meninas que se casam cedo possuem o mesmo destino”, diz Viviana Santiago.

Ela ainda alerta que vivemos em uma sociedade patriarcal que adultiza e erotiza as meninas, portanto elas precisam de proteção. Para a especialista, é necessário discutir os papéis de gênero e fazer com que os órgãos públicos coloquem essa pauta na sua agenda urgentemente. 

“O nosso olhar está treinado para ver o casamento como uma solução, mas deve acabar a romantização. A indiferença faz com que essa situação se perpetue. É preciso acreditar no futuro das nossas meninas e se sensibilizar com esse tema”, conclui. 


Fonte:
OBSERVATÓRIO DO TERCEIRO SETOR
Voltar

Receba Informativos por E-mail

Cadastre seu e-mail e fique por dentro das novidades.