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03/11/2016 - Estas histórias mostram o quão difícil é ser criança no Brasil
03/11/2016
Chegar vivo e íntegro aos 12 anos é um desafio para garotas e garotos pobres do Brasil. Isso mesmo, 12 anos. É quando a criança sai do ninho para o ambiente comunitário, sob uma espécie de emancipação por parte da família, que espera dela autonomia. Para se locomover, comprar roupa e crédito de celular e levar algum recurso para casa, ela verá à frente dois caminhos: o trabalho precário ou a conquista de dinheiro na desumana usina do tráfico de drogas, da exploração sexual e dos pequenos delitos.
O traço mais comum entre essas crianças: o abandono escolar. Por volta do 6º ano do ensino fundamental, muitas deixam de estudar e se somam aos que nunca foram ao colégio, totalizando 2,8 milhões de crianças e adolescentes fora do sistema de ensino. Não são contabilizados os alunos com deficiências de aprendizado – e igualmente desinteressados pelo conteúdo fraco, desconectado da realidade e que em nada ajuda na busca por independência.
“As políticas para essa fase tão crítica são frágeis”, diz Rui Aguiar, chefe do escritório de Fortaleza do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). “O Estado não chega com competência à vida dos adolescentes. Oferece uma escola que não seduz e não forma habilidades como a tomada de decisão, o autocuidado e o reconhecimento de direitos.”
O professor Julio Jacobo Waiselfisz, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, revelou em julho passado que jovens do sexo masculino com baixa escolaridade (até três anos de estudo) correm 60 vezes mais risco de serem assassinados. E provocou reflexões ao questionar se a nossa educação seria uma blindagem contra homicídios.
Ao que tudo indica, menos educada, a criança é presa fácil de todas as violências urbanas e demonstra pouco repertório para se defender também de abusos em casa. As quatro histórias a seguir mostram que meninas e meninos (cujas identidades foram protegidas em nomes fictícios) sentem-se sozinhos, desamparados e obrigados a se virar como podem na tentativa de inclusão na sociedade proibida a eles.
Chico se viu no meio de uma saraivada de pedras na tarde de 26 de janeiro de 2015, em Fortaleza. Quando a polícia chegou, seu corpo linchado vertia sangue. Morrera aos 12 anos em uma disputa de território. Como punição exemplar. Um morador da quebrada debaixo da favela, como ele, não podia pisar na aba de cima. Correu também o mexerico de que se metera no delivery de maconha. Os vizinhos não creem – gostavam de Chico, até pagaram seu enterro. Dias depois, um amigo de 15 foi vingar o crime. Voltou morto para casa, onde velaram o que sobrou dele.
Desde os 8 anos, Chico ganhava seus trocados na feira e em uma oficina. Pagava, feliz, parte da despesa da família. Era também esquentado. Numa rusga, jogou o prato de sopa no rosto da merendeira da escola. A direção condicionou sua permanência a um tratamento psicológico. Como andava cheio daquele ambiente, encerrou a carreira acadêmica.
Na casa dele vivem seis crianças sob o cuidado da avó, que, por ser líder na comunidade, supunha ter os netos protegidos. Do extermínio para cá, a vida desandou. A irmã, Ana, 11 anos, é a única que vai ao colégio. Já o irmão, Pedro, 8, não sabe escrever o nome. Os primos João, 13, e Lina, 9, foram expulsos mais de uma vez. “É revoltante. Lá eu brincava; aqui não tem espaço”, desabafa João. Os mais novos, de 3 e 5 anos, nem pela creche passaram. Eles vivem como marcados para morrer.
“Um mês depois, foram à escola atrás de mim. A gente não saía na rua”, conta Ana. Um dos pequenos comenta: “Eu ficava doente e ninguém podia me levar para o hospital”. Ana retoma: “Os caras que mataram zombam de mim. Não vou deixar barato”. Ela quer ser policial. João não acha bom: “Tem gente que é surrada ou ‘matada’ pela polícia”.
Esse é outro drama. Segundo a Anistia Internacional, as forças policiais do Brasil são as que mais matam. Em 2015, só no Rio de Janeiro, foram 645 pessoas, na maioria, pretas ou pardas. “Sou pardo, tenho medo”, diz João. “Já me mandaram vender a casa”, conta a avó. “Vivo aqui há 40 anos, não vou ceder.” Para Aguiar, do Unicef, cada morte impacta uma rede, que passa a viver em perigo.
O homicídio cresce no Ceará: do 20º lugar entre os estados mais violentos do país em 2003, pulou para o 3º em 2013. Neste mês, o Unicef e a Assembleia Legislativa revelam uma pesquisa com garotos apreendidos e famílias de jovens mortos. Na época dos crimes, 74% dos meninos estavam fora da escola; 77% tinham tido experiências com o trabalho (só 2% como aprendizes, acima de 14 anos, conforme a lei); 50% dos casos ocorreram em áreas com luz e saneamento precários, sem cultura e lazer. “A morte começa no abandono do Estado”, declara Aguiar.
“Uma vizinha me chamou para dormir na casa dela. Ninguém do bairro sabia que ali meninas faziam programa. Ela disse: ‘Poca a virgindade com esse comerciante que a gente vai ganhar dinheiro’. Eu respondi: ‘Tá bom’. E poquei. "Foi ruim, senti vergonha. O homem deu 200 reais; metade veio para mim.” O relato é de Lisa, que tinha 12 anos quando a história aconteceu.
Hoje, aos 14, ela explica que pocar, no Espírito Santo, é o verbo mais usado no lugar de estourar. Ela voltou algumas vezes àquela casa, na periferia de Cariacica (na Grande Vitória), para encarar até cinco programas por noite. No dia seguinte, ou não ia à escola ou dormia na carteira. Ficou grávida, e a dona do muquifo provocou o aborto com remédio.
Uma denúncia anônima mobilizou a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, de Vitória. Foram presos duas aliciadoras e três frequentadores assíduos: o homem que desvirginou Lisa, um aposentado e um policial militar. O delegado Lorenzo Pazolini concluiu o inquérito em maio de 2015, no aniversário de um ano da lei que torna crime hediondo o abuso e a exploração sexual de crianças. A sentença dos réus pode sair até dezembro, e a pena deve chegar a dez anos, sem direito a fiança.
A lei freou redes que atuavam nas estradas. Em duas madrugadas, a reportagem de CLAUDIA seguiu cinco viaturas com 20 agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) pelas rodovias capixabas. A blitz não achou uma única menina em bares e bordéis. “Os pontos migram; é difícil flagrar o explorador”, explica Marcia Tirres, chefe da Comissão Regional de Direitos Humanos da PRF. “Mas notamos uma diminuição.” Ela conta que já encontrou também garotos de 9 e 10 anos. “Alguns se submetem àquilo por um prato de comida”, afirma.
Desde 2003, a PRF faz um mapeamento nacional dos pontos vulneráveis à exploração. “Os lugares mais críticos estão nos 470 municípios com os mais baixos índices de educação e renda.” Neles, vivem 6,8 milhões de jovens de 10 a 17. Dos que têm até 14 anos, 260 mil faziam trabalhos precários; 527 mil deixaram a escola; 120 mil eram analfabetos. “Nas estradas federais, 4 mil crianças foram resgatadas nos últimos 13 anos e levadas para os conselhos tutelares.”
Assim que o delegado começou a investigar, Lisa sofreu ameaças. “O PM disse que, se eu abrisse a boca, ele me mataria”, lembra. Por segurança, a garota foi levada para um abrigo. “Fugi oito vezes, até a juíza entender que não queria ficar”, diz. “O trauma a marcará para sempre se não contar com assistência para estruturar a família toda”, argumenta Pazolini.
Lisa está longe do final feliz: “Se pudesse, trocava de cara para nunca mais ser xingada de puta”. Ela mora com o avô e dois irmãos; o pai não assume a paternidade. “Mamei na minha mãe até o dia em que ela foi assassinada. Eu tinha 8 anos, era grudada. Se ela estivesse aqui, eu não viveria nessa confusão.”
O cabelo de Zeca está impecavelmente penteado com a ajuda de gel ou algo assim. Veste uma camiseta limpa, bermuda idem. A inadequação no visual fica por conta da falta de agasalho e os pés nos chinelos em uma gelada tarde paulistana. Aos 12 anos, com a caixa de engraxar nas costas, ele não entende direito as perguntas que o levam a refletir que trabalhar naquela idade não é bom para o crescimento.
“Como? Estou no Aeroporto de Congonhas! Minha mãe sabe! Acabou o gás. Ela me tirou do futebol e mandou vir para cá”, afirma. Essa é sua profissão desde os 8. Ele atua em bares e nesse aeroporto, um dos mais importantes do país. “Só saio daqui quando juntar 75 reais para o botijão”, explica. Não está só: seu irmão Lucas, 14 anos, também trabalha ali, onde são vistos outros dez ou 12 engraxates; alguns adultos.
Os dois moravam perto, no Morro do Piolho, no bairro de Campo Belo, mas os incêndios na favela fizeram com que se mudassem com a mãe e o caçula para uma pensão. Zeca havia passado uns tempos na casa do pai e, na volta, acabou se atrasando para a matrícula na escola; perdeu a vaga e o ano. Pela segunda vez. O mais velho estuda. Querendo chocar os adultos à sua volta, diz que o pai é bandido, todos no morro são bandidos, ele será bandido. “Não é assim que pensam?”, pergunta. Zeca sente vergonha, aperta a escova na bota que lustra e finge não ouvir.
Fiscais passam e nada fazem. Os garotos não poderiam estar ali. Em 17 de maio passado, o juiz André Cremonesi, da 5ª Vara do Trabalho, condenou a Infraero, que administra o aeroporto. Determinou, entre várias medidas, que Congonhas “não permita e não explore indiretamente o trabalho de crianças em atividades insalubres, perigosas, noturnas e prejudiciais”. A Infraero informou à reportagem que recorreu da decisão e aguarda. A Prefeitura de São Paulo foi igualmente condenada, e a ela cabe identificar as crianças, detectar as dificuldades de suas famílias e incluí-las em programas de educação e renda.
Gabriela Cruz, do serviço de enfrentamento ao trabalho infantil da prefeitura, afirma que dois orientadores sociais, por turno, tentam criar vínculo com os jovens e acolher os que aceitam. E ainda negocia com o aeroporto uma sala para a abordagem. Elisiane dos Santos, procuradora do Ministério Público do Trabalho que iniciou a ação, estranha a demora nas providências. “Independentemente do processo, ambas devem cumprir sua responsabilidade social. A Infraero poderia, por exemplo, contratar aprendizes a partir dos 14 anos”, sugere.
“Ela não pode se omitir, deixando as crianças sujeitas ao aliciamento pelo tráfico e à exploração sexual.” Para Santos, ocorre uma naturalização que faz o passageiro usar o serviço. “Uma campanha deveria avisá-lo de que contribui com a violação de direitos.” Enquanto correm o processo e o tempo, Zeca e o irmão seguem crescendo ali, com o futuro cada vez mais estreito.
Bia procurou a diretora da escola, disse que precisava de ajuda. Ocupada, ela mandou a garota voltar no dia seguinte. “Ok, eu voltei. Pensei que ela fosse se assustar, mas me mandou para o Conselho Tutelar. Peguei em casa minha certidão, o documento da minha mãe e fui. Parei também na delegacia, no fórum, fiz exame, falei com uma psicóloga. Me botaram em um abrigo”, relata. Bia tinha 10 anos na época do périplo em busca de reparação.
Na véspera de ir à diretoria, sentiu uma dor forte, um corpo sobre o seu e viu sangue na vagina. “Meu irmão, de 19, já havia tentado pôr o pênis em mim, e me defendi. Mas naquela noite eu estava dormindo e não percebi o ataque”, conta, hoje, aos 18. “Ele não foi para a cadeia. Quem ficou presa no abrigo fui eu. Tinha de lavar prato e roupa; isso me atrapalhou na escola.” Bia largou os estudos no 6º ano e vive com o namorado em uma periferia. Nem mesmo o nome da cidade quer que seja revelado: “Minha mãe já sofreu tanto, não quero que reviva o drama e chore de novo”.
O médico Jefferson Drezett, coordenador do Serviço de Violência Sexual e Aborto Legal do Hospital Pérola Byington, em São Paulo, afirma ser comum a vítima tomar para si a responsabilidade. Os parentes culpam a criança pela prisão do agressor e a desagregação da família. “Mesmo sob o trauma, que pode impactar seu desenvolvimento, ela poupa o entorno”, diz ele.
“Eu nunca vou esquecer”, relata a garota. “Minha mãe falou uma coisa para a juíza, mas a verdade era outra.” Bia saiu do abrigo e encontrou o irmão morando na casa. “Ele disse que não tinha dinheiro para se mudar. A gente brigava muito, e eu decidi passar uns tempos em uma cidade vizinha. Mas voltava, porque amava minha mãe.”
No Disque 100, serviço do governo federal que registra violações aos direitos das crianças, o abuso sexual é uma das queixas mais preocupantes, entre 13 tipos de violência. Em 2015, das 80,4 mil ligações, 17,6 mil eram sobre casos parecidos com o de Bia. “Das crianças atendidas no Pérola Byington, 85% foram molestadas por pessoas que tinham acesso à rotina delas”, diz Drezett.
Se aprovado o Projeto de Lei 2792/15, que tramita na Câmara dos Deputados, a criança terá direito a uma escuta protegida e não sofrerá revitimização pois não precisará repetir o episódio em diferentes órgãos. O ônus do crime – hoje hediondo – sairá dos seus ombros. Mas a medida será inócua se, como ocorreu com Bia, a proteção se restringir a um abrigo que funciona como depósito de gente, sem opções para a reestruturação do emocional abalado pela violência.
Fonte:
Claudia
Por pzaidan Letícia Paiva
3 nov 2016, 09h08
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O país não protege os brasileiros durante a infância e a adolescência. Fora da escola, eles estão à mercê do abuso sexual, do trabalho perverso e da morte.
Chegar vivo e íntegro aos 12 anos é um desafio para garotas e garotos pobres do Brasil. Isso mesmo, 12 anos. É quando a criança sai do ninho para o ambiente comunitário, sob uma espécie de emancipação por parte da família, que espera dela autonomia. Para se locomover, comprar roupa e crédito de celular e levar algum recurso para casa, ela verá à frente dois caminhos: o trabalho precário ou a conquista de dinheiro na desumana usina do tráfico de drogas, da exploração sexual e dos pequenos delitos.
O traço mais comum entre essas crianças: o abandono escolar. Por volta do 6º ano do ensino fundamental, muitas deixam de estudar e se somam aos que nunca foram ao colégio, totalizando 2,8 milhões de crianças e adolescentes fora do sistema de ensino. Não são contabilizados os alunos com deficiências de aprendizado – e igualmente desinteressados pelo conteúdo fraco, desconectado da realidade e que em nada ajuda na busca por independência.
“As políticas para essa fase tão crítica são frágeis”, diz Rui Aguiar, chefe do escritório de Fortaleza do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). “O Estado não chega com competência à vida dos adolescentes. Oferece uma escola que não seduz e não forma habilidades como a tomada de decisão, o autocuidado e o reconhecimento de direitos.”
O professor Julio Jacobo Waiselfisz, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, revelou em julho passado que jovens do sexo masculino com baixa escolaridade (até três anos de estudo) correm 60 vezes mais risco de serem assassinados. E provocou reflexões ao questionar se a nossa educação seria uma blindagem contra homicídios.
Ao que tudo indica, menos educada, a criança é presa fácil de todas as violências urbanas e demonstra pouco repertório para se defender também de abusos em casa. As quatro histórias a seguir mostram que meninas e meninos (cujas identidades foram protegidas em nomes fictícios) sentem-se sozinhos, desamparados e obrigados a se virar como podem na tentativa de inclusão na sociedade proibida a eles.
Chico se viu no meio de uma saraivada de pedras na tarde de 26 de janeiro de 2015, em Fortaleza. Quando a polícia chegou, seu corpo linchado vertia sangue. Morrera aos 12 anos em uma disputa de território. Como punição exemplar. Um morador da quebrada debaixo da favela, como ele, não podia pisar na aba de cima. Correu também o mexerico de que se metera no delivery de maconha. Os vizinhos não creem – gostavam de Chico, até pagaram seu enterro. Dias depois, um amigo de 15 foi vingar o crime. Voltou morto para casa, onde velaram o que sobrou dele.
Desde os 8 anos, Chico ganhava seus trocados na feira e em uma oficina. Pagava, feliz, parte da despesa da família. Era também esquentado. Numa rusga, jogou o prato de sopa no rosto da merendeira da escola. A direção condicionou sua permanência a um tratamento psicológico. Como andava cheio daquele ambiente, encerrou a carreira acadêmica.
Na casa dele vivem seis crianças sob o cuidado da avó, que, por ser líder na comunidade, supunha ter os netos protegidos. Do extermínio para cá, a vida desandou. A irmã, Ana, 11 anos, é a única que vai ao colégio. Já o irmão, Pedro, 8, não sabe escrever o nome. Os primos João, 13, e Lina, 9, foram expulsos mais de uma vez. “É revoltante. Lá eu brincava; aqui não tem espaço”, desabafa João. Os mais novos, de 3 e 5 anos, nem pela creche passaram. Eles vivem como marcados para morrer.
“Um mês depois, foram à escola atrás de mim. A gente não saía na rua”, conta Ana. Um dos pequenos comenta: “Eu ficava doente e ninguém podia me levar para o hospital”. Ana retoma: “Os caras que mataram zombam de mim. Não vou deixar barato”. Ela quer ser policial. João não acha bom: “Tem gente que é surrada ou ‘matada’ pela polícia”.
Esse é outro drama. Segundo a Anistia Internacional, as forças policiais do Brasil são as que mais matam. Em 2015, só no Rio de Janeiro, foram 645 pessoas, na maioria, pretas ou pardas. “Sou pardo, tenho medo”, diz João. “Já me mandaram vender a casa”, conta a avó. “Vivo aqui há 40 anos, não vou ceder.” Para Aguiar, do Unicef, cada morte impacta uma rede, que passa a viver em perigo.
O homicídio cresce no Ceará: do 20º lugar entre os estados mais violentos do país em 2003, pulou para o 3º em 2013. Neste mês, o Unicef e a Assembleia Legislativa revelam uma pesquisa com garotos apreendidos e famílias de jovens mortos. Na época dos crimes, 74% dos meninos estavam fora da escola; 77% tinham tido experiências com o trabalho (só 2% como aprendizes, acima de 14 anos, conforme a lei); 50% dos casos ocorreram em áreas com luz e saneamento precários, sem cultura e lazer. “A morte começa no abandono do Estado”, declara Aguiar.
“Uma vizinha me chamou para dormir na casa dela. Ninguém do bairro sabia que ali meninas faziam programa. Ela disse: ‘Poca a virgindade com esse comerciante que a gente vai ganhar dinheiro’. Eu respondi: ‘Tá bom’. E poquei. "Foi ruim, senti vergonha. O homem deu 200 reais; metade veio para mim.” O relato é de Lisa, que tinha 12 anos quando a história aconteceu.
Hoje, aos 14, ela explica que pocar, no Espírito Santo, é o verbo mais usado no lugar de estourar. Ela voltou algumas vezes àquela casa, na periferia de Cariacica (na Grande Vitória), para encarar até cinco programas por noite. No dia seguinte, ou não ia à escola ou dormia na carteira. Ficou grávida, e a dona do muquifo provocou o aborto com remédio.
Uma denúncia anônima mobilizou a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, de Vitória. Foram presos duas aliciadoras e três frequentadores assíduos: o homem que desvirginou Lisa, um aposentado e um policial militar. O delegado Lorenzo Pazolini concluiu o inquérito em maio de 2015, no aniversário de um ano da lei que torna crime hediondo o abuso e a exploração sexual de crianças. A sentença dos réus pode sair até dezembro, e a pena deve chegar a dez anos, sem direito a fiança.
A lei freou redes que atuavam nas estradas. Em duas madrugadas, a reportagem de CLAUDIA seguiu cinco viaturas com 20 agentes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) pelas rodovias capixabas. A blitz não achou uma única menina em bares e bordéis. “Os pontos migram; é difícil flagrar o explorador”, explica Marcia Tirres, chefe da Comissão Regional de Direitos Humanos da PRF. “Mas notamos uma diminuição.” Ela conta que já encontrou também garotos de 9 e 10 anos. “Alguns se submetem àquilo por um prato de comida”, afirma.
Desde 2003, a PRF faz um mapeamento nacional dos pontos vulneráveis à exploração. “Os lugares mais críticos estão nos 470 municípios com os mais baixos índices de educação e renda.” Neles, vivem 6,8 milhões de jovens de 10 a 17. Dos que têm até 14 anos, 260 mil faziam trabalhos precários; 527 mil deixaram a escola; 120 mil eram analfabetos. “Nas estradas federais, 4 mil crianças foram resgatadas nos últimos 13 anos e levadas para os conselhos tutelares.”
Assim que o delegado começou a investigar, Lisa sofreu ameaças. “O PM disse que, se eu abrisse a boca, ele me mataria”, lembra. Por segurança, a garota foi levada para um abrigo. “Fugi oito vezes, até a juíza entender que não queria ficar”, diz. “O trauma a marcará para sempre se não contar com assistência para estruturar a família toda”, argumenta Pazolini.
Lisa está longe do final feliz: “Se pudesse, trocava de cara para nunca mais ser xingada de puta”. Ela mora com o avô e dois irmãos; o pai não assume a paternidade. “Mamei na minha mãe até o dia em que ela foi assassinada. Eu tinha 8 anos, era grudada. Se ela estivesse aqui, eu não viveria nessa confusão.”
O cabelo de Zeca está impecavelmente penteado com a ajuda de gel ou algo assim. Veste uma camiseta limpa, bermuda idem. A inadequação no visual fica por conta da falta de agasalho e os pés nos chinelos em uma gelada tarde paulistana. Aos 12 anos, com a caixa de engraxar nas costas, ele não entende direito as perguntas que o levam a refletir que trabalhar naquela idade não é bom para o crescimento.
“Como? Estou no Aeroporto de Congonhas! Minha mãe sabe! Acabou o gás. Ela me tirou do futebol e mandou vir para cá”, afirma. Essa é sua profissão desde os 8. Ele atua em bares e nesse aeroporto, um dos mais importantes do país. “Só saio daqui quando juntar 75 reais para o botijão”, explica. Não está só: seu irmão Lucas, 14 anos, também trabalha ali, onde são vistos outros dez ou 12 engraxates; alguns adultos.
Os dois moravam perto, no Morro do Piolho, no bairro de Campo Belo, mas os incêndios na favela fizeram com que se mudassem com a mãe e o caçula para uma pensão. Zeca havia passado uns tempos na casa do pai e, na volta, acabou se atrasando para a matrícula na escola; perdeu a vaga e o ano. Pela segunda vez. O mais velho estuda. Querendo chocar os adultos à sua volta, diz que o pai é bandido, todos no morro são bandidos, ele será bandido. “Não é assim que pensam?”, pergunta. Zeca sente vergonha, aperta a escova na bota que lustra e finge não ouvir.
Fiscais passam e nada fazem. Os garotos não poderiam estar ali. Em 17 de maio passado, o juiz André Cremonesi, da 5ª Vara do Trabalho, condenou a Infraero, que administra o aeroporto. Determinou, entre várias medidas, que Congonhas “não permita e não explore indiretamente o trabalho de crianças em atividades insalubres, perigosas, noturnas e prejudiciais”. A Infraero informou à reportagem que recorreu da decisão e aguarda. A Prefeitura de São Paulo foi igualmente condenada, e a ela cabe identificar as crianças, detectar as dificuldades de suas famílias e incluí-las em programas de educação e renda.
Gabriela Cruz, do serviço de enfrentamento ao trabalho infantil da prefeitura, afirma que dois orientadores sociais, por turno, tentam criar vínculo com os jovens e acolher os que aceitam. E ainda negocia com o aeroporto uma sala para a abordagem. Elisiane dos Santos, procuradora do Ministério Público do Trabalho que iniciou a ação, estranha a demora nas providências. “Independentemente do processo, ambas devem cumprir sua responsabilidade social. A Infraero poderia, por exemplo, contratar aprendizes a partir dos 14 anos”, sugere.
“Ela não pode se omitir, deixando as crianças sujeitas ao aliciamento pelo tráfico e à exploração sexual.” Para Santos, ocorre uma naturalização que faz o passageiro usar o serviço. “Uma campanha deveria avisá-lo de que contribui com a violação de direitos.” Enquanto correm o processo e o tempo, Zeca e o irmão seguem crescendo ali, com o futuro cada vez mais estreito.
Bia procurou a diretora da escola, disse que precisava de ajuda. Ocupada, ela mandou a garota voltar no dia seguinte. “Ok, eu voltei. Pensei que ela fosse se assustar, mas me mandou para o Conselho Tutelar. Peguei em casa minha certidão, o documento da minha mãe e fui. Parei também na delegacia, no fórum, fiz exame, falei com uma psicóloga. Me botaram em um abrigo”, relata. Bia tinha 10 anos na época do périplo em busca de reparação.
Na véspera de ir à diretoria, sentiu uma dor forte, um corpo sobre o seu e viu sangue na vagina. “Meu irmão, de 19, já havia tentado pôr o pênis em mim, e me defendi. Mas naquela noite eu estava dormindo e não percebi o ataque”, conta, hoje, aos 18. “Ele não foi para a cadeia. Quem ficou presa no abrigo fui eu. Tinha de lavar prato e roupa; isso me atrapalhou na escola.” Bia largou os estudos no 6º ano e vive com o namorado em uma periferia. Nem mesmo o nome da cidade quer que seja revelado: “Minha mãe já sofreu tanto, não quero que reviva o drama e chore de novo”.
O médico Jefferson Drezett, coordenador do Serviço de Violência Sexual e Aborto Legal do Hospital Pérola Byington, em São Paulo, afirma ser comum a vítima tomar para si a responsabilidade. Os parentes culpam a criança pela prisão do agressor e a desagregação da família. “Mesmo sob o trauma, que pode impactar seu desenvolvimento, ela poupa o entorno”, diz ele.
“Eu nunca vou esquecer”, relata a garota. “Minha mãe falou uma coisa para a juíza, mas a verdade era outra.” Bia saiu do abrigo e encontrou o irmão morando na casa. “Ele disse que não tinha dinheiro para se mudar. A gente brigava muito, e eu decidi passar uns tempos em uma cidade vizinha. Mas voltava, porque amava minha mãe.”
No Disque 100, serviço do governo federal que registra violações aos direitos das crianças, o abuso sexual é uma das queixas mais preocupantes, entre 13 tipos de violência. Em 2015, das 80,4 mil ligações, 17,6 mil eram sobre casos parecidos com o de Bia. “Das crianças atendidas no Pérola Byington, 85% foram molestadas por pessoas que tinham acesso à rotina delas”, diz Drezett.
Se aprovado o Projeto de Lei 2792/15, que tramita na Câmara dos Deputados, a criança terá direito a uma escuta protegida e não sofrerá revitimização pois não precisará repetir o episódio em diferentes órgãos. O ônus do crime – hoje hediondo – sairá dos seus ombros. Mas a medida será inócua se, como ocorreu com Bia, a proteção se restringir a um abrigo que funciona como depósito de gente, sem opções para a reestruturação do emocional abalado pela violência.
Fonte:
Claudia
Por pzaidan Letícia Paiva
3 nov 2016, 09h08
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