Notícias
01/02/2023 - Crianças Yanomami foram as maiores vítimas
30/01/2023
Manaus (AM) – A cena parecia de cinema, mas aconteceu diante dos olhos da médica Gabriela Mafra. Ao tentar dar um remédio contra a malária, a doutora segurou o rostinho de uma criança e achou que ela estava se engasgando. A frágil Yanomami se contorcia. E aí Gabriela viu algo na boca dela. “Era um verme, um verme muito grande. As crianças estavam com vermes saindo pela boca”, relembra, num relato chocante.
Há um ano, Gabriela atende ao povo Yanomami na região do Surucucu, depois de ter atuado por três anos na região de Auaris. É dentro do maior território indígena brasileiro que a médica acompanha a crise humanitária e sanitária que está devastando crianças e adultos. O caso da criança acima não foi o único desde então. “Eu atendi ao chamado de um pai que a filha não conseguia dormir porque toda vez que ela se deitava, os vermes começavam a sair pelo nariz dela. É uma situação absurda”, desabafa.
Os quatro anos de trabalho no Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Yanomami, em Roraima, se tornaram um drama pessoal para Gabriela e seus colegas, que lutam para salvar os indígenas da forma que podem. Em sua rotina de trabalho, a médica passa 15 dias em Surucucu e os outros 15 em Boa Vista. No ano passado, quando estava na capital roraimense, o esforço era para conseguir doações de medicamentos básicos que estavam faltando no Dsei, problema que começou a se agravar a partir de junho de 2022.
“A quinzena mais difícil que eu tive foi quando nós estávamos com falta de medicação para febre, falta de antibiótico. A gente não tinha nada para trabalhar, e assim, além de todo o sofrimento que isso causa para um paciente – levando em consideração que estamos trabalhando em uma zona endémica de malária e o principal sintoma da malária é a febre –, o mais básico é ter algum antitérmico, paracetamol, e nós não tínhamos, chegamos a um estado também de não ter um albendazol e mebendazol, que são antiparasitários”, revela.
Depois da ida do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a Boa Vista, logo após surgirem imagens chocantes de crianças e adultos Yanomami esquálidos, com desnutrição severa, o governo federal e a população começaram a se mobilizar pelos indígenas, trazendo certo alívio para a médica Gabriela. “Estou lá dentro há um ano vendo tudo isso e pedindo socorro, tentando movimentar as pessoas, fazendo com que tomassem consciência de tudo que estava acontecendo lá e, finalmente, agora as coisas estão começando a mudar”.
Crianças Yanomami em situação mais grave estão sendo levadas para Boa Vista, onde podem receber melhor tratamento. Na última semana, a prefeitura de Boa Vista informou que o Hospital da Criança Santo Antônio (HCSA), teve 703 casos de internações de crianças Yanomami, em 2022. Até semana passada, 62 indígenas estavam internados. “Desses, 46 são crianças Yanomami e cinco estavam na UTI. No período de 16 de janeiro a 25 de janeiro, foram registradas 47 internações de indígenas, dessas, 30 de Yanomami”, explicou o hospital.
Foi no HCSA que o pediatra Ricardo Frota relatava, num misto de espanto e horror, o grave quadro de desnutrição de um bebê de um ano e quatro meses. Se fosse sadio, deveria pesar 12 quilos, mas Frota não podia acreditar no que via: “Ele pesa quatro (quilos) ponto 300 (gramas)”, em relato ouvido pela Amazônia Real na unidade hospitalar.
Desde domingo (29) e até quinta-feira (2), uma missão do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania está em Boa Vista para apurar se houve omissão do Estado brasileiro, no governo Bolsonaro, em relação à crise humanitária que atinge o povo Yanomami. No encontro, os integrantes da comitiva ouvirão lideranças locais que estejam ameaçadas com a possibilidade de incluí-las em uma rede de proteção.
O ministro da Justiça, Flávio Dino, já usou a palavra “genocídio” para se referir à atual crise humanitária dos Yanomami. Foi nesta TI o único caso de genocídio julgado até hoje no Brasil pelos assassinatos de 16 indígenas por garimpeiros, em 1993. Homologada com 9,4 milhões de hectares, em 1992, com limites entre Amazonas e Roraima com a Venezuela, a TIY viu o garimpo ser retomado a partir de 2016, causando graves violações aos direitos indígenas, como denunciado pela Amazônia Real na série Ouro do Sangue Yanomami, e de forma acelarada nos últimos quatro anos, já sob Bolsonaro.
Sem proteção
Agora que os apelos de profissionais de saúde e entidades de defesa dos povos indígenas começam a ser ouvidos surgem informações de que os órgãos federais, na gestão de Jair Bolsonaro (PL), deixaram os indígenas sem a mínima proteção. O Ministério Público Federal (MPF) investiga, após denúncias de líderes indígenas e profissionais de saúde, que o Dsei Yanomami promoveu um desabastecimento generalizado no Território Indígena (TIY). O MPF já detectou um esquema corrupto de nomeações e compra de medicamentos. Em novembro, o órgão e a Polícia Federal realizaram a Operação Yoasi, afastando agentes públicos e responsabilizando empresários.
“Vivíamos pedindo socorro. Eu saía e passava um tempo aqui (Boa Vista) tentando contato com alguém para conseguir doação de remédio e os órgãos que eram responsáveis por fornecer a medicação não estavam se importando muito. Foi uma fase muito difícil que a gente enfrentou”, revela Gabriela Mafra. Mas o quadro devastador vai além da falta de comida e de medicamentos básicos.
Gabriela lembra que, há quatro meses, atendeu um indígena ferido com um tiro. “Nós tivemos que improvisar um tratamento no paciente. Ele teve um hemotórax [que é presença de sangue no tórax]. Eu tive que fazer uma drenagem de tórax lá, colocar um tubo no paciente. E a gente não tinha também este material, então foi improvisado, a gente encontrou uma mangueira aleatória lá, fizemos tudo improvisado, para poder salvar a vida desse paciente”, conta a médica, revelando que neste caso, a vítima, indígena, foi alvejada por um outro indígena. “Eles conseguem munições com os garimpeiros.”
Impacto cultural
A invasão de garimpeiros no TIY trouxe uma série de modificações no próprio modo de vida dos indígenas. “É muito triste ver, às vezes, um indígena consumindo pornografia, ver um indígena com IST (Infecções Sexualmente Transmissíveis), ver um indígena ser usuário de droga. Você vai numa comunidade fazer uma visita e você encontra garrafa de cachaça. Eu acredito que a presença do garimpo já impactou de forma negativa, em todos os aspectos, tanto na saúde quanto na cultura”, explica a médica Gabriela. Ela revela ainda que há casos de exploração sexual das indígenas por garimpeiros, além da própria inserção do indígena na dinâmica do garimpo. “Eles [garimpeiros] colocam o indígena para trabalhar para eles, o indígena vai receber, e o indígena vai gastar ali dentro do próprio garimpo. Eles têm uma vendinha lá, tem as moças que trabalham lá.”
O drama humanitário dos indígenas de Roraima, principalmente das crianças Yanomami, foi amplamente documentado na “Pesquisa sobre os determinantes sociais da desnutrição de crianças indígenas de até 5 anos de idade em oito aldeias inseridas no Dsei Yanomami”.
O estudo foi feito a pedido da Hutukara Associação Yanomami, que queria obter um diagnóstico da situação de saúde, nutrição e de contaminação ambiental dos Yanomami. Os pesquisadores responsáveis pelo estudo são Paulo Cesar Basta e Jesem Orellana, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O estudo foi financiado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
“Encontramos uma proporção de crianças menores de cinco anos com desnutrição crônica num nível extremamente absurdo, incomparável com o que se vê no restante do Brasil, inclusive do Brasil rural, do Brasil interiorano, do Brasil ribeirinho, do Brasil que remete à década de 60, 70, de 40 a 50 anos atrás”, revela o pesquisador Jesem Orellana.
A coleta de dados foi feita entre dezembro de 2018 e fevereiro de 2019, nas regiões de Auaris e Maturacá, no Dsei Yanomami, o que mostra que o governo brasileiro tinha conhecimento da grave situação dos indígenas. No trabalho de campo feito por Paulo Cesar Basta e Jesem Orellana, um total de 304 crianças menores de cinco foram examinadas, sendo 80 delas provenientes do território de Auaris; 118 de Maturacá; e 106 de Ariabú.
Um dos dados alarmantes mostra que o drama da fome já começa antes mesmo do nascimento das crianças, com suas mães, passando por restrições alimentares. É o caso que acontece no território de Auaris, onde 90% das gestantes passaram por restrições alimentares.
Enquanto em Ariabú e Maturacá, pelo menos 80% dos indígenas conseguem comer arroz e feijão, em Auaris, os indígenas praticamente não têm acesso a esse tipo de alimento. Nesta localidade, metade das crianças tiveram pneumonia, e 30% delas haviam tido problemas com diarreia nas últimas 48 horas da época em que a pesquisa foi a campo. Já no que diz respeito à desnutrição, a pesquisa mostrou que 81,2% das crianças menores de 5 anos apresentaram baixa estatura para a idade, 48,5% baixo peso, e 67,8% anemia.
Ainda de acordo com a pesquisa, as maiores prevalências de baixa estatura e baixo peso para a idade foram registradas na região de Auaris, onde 88,3% e 70,9% das crianças apresentaram esse diagnóstico. Jesem Orellana já havia denunciado uma possível transmissão da desnutrição crônica intergeracional entre os Yanomami, conforme divulgado pela Amazônia Real.
Manaus (AM) – A cena parecia de cinema, mas aconteceu diante dos olhos da médica Gabriela Mafra. Ao tentar dar um remédio contra a malária, a doutora segurou o rostinho de uma criança e achou que ela estava se engasgando. A frágil Yanomami se contorcia. E aí Gabriela viu algo na boca dela. “Era um verme, um verme muito grande. As crianças estavam com vermes saindo pela boca”, relembra, num relato chocante.
Há um ano, Gabriela atende ao povo Yanomami na região do Surucucu, depois de ter atuado por três anos na região de Auaris. É dentro do maior território indígena brasileiro que a médica acompanha a crise humanitária e sanitária que está devastando crianças e adultos. O caso da criança acima não foi o único desde então. “Eu atendi ao chamado de um pai que a filha não conseguia dormir porque toda vez que ela se deitava, os vermes começavam a sair pelo nariz dela. É uma situação absurda”, desabafa.
Os quatro anos de trabalho no Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Yanomami, em Roraima, se tornaram um drama pessoal para Gabriela e seus colegas, que lutam para salvar os indígenas da forma que podem. Em sua rotina de trabalho, a médica passa 15 dias em Surucucu e os outros 15 em Boa Vista. No ano passado, quando estava na capital roraimense, o esforço era para conseguir doações de medicamentos básicos que estavam faltando no Dsei, problema que começou a se agravar a partir de junho de 2022.
“A quinzena mais difícil que eu tive foi quando nós estávamos com falta de medicação para febre, falta de antibiótico. A gente não tinha nada para trabalhar, e assim, além de todo o sofrimento que isso causa para um paciente – levando em consideração que estamos trabalhando em uma zona endémica de malária e o principal sintoma da malária é a febre –, o mais básico é ter algum antitérmico, paracetamol, e nós não tínhamos, chegamos a um estado também de não ter um albendazol e mebendazol, que são antiparasitários”, revela.
Depois da ida do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a Boa Vista, logo após surgirem imagens chocantes de crianças e adultos Yanomami esquálidos, com desnutrição severa, o governo federal e a população começaram a se mobilizar pelos indígenas, trazendo certo alívio para a médica Gabriela. “Estou lá dentro há um ano vendo tudo isso e pedindo socorro, tentando movimentar as pessoas, fazendo com que tomassem consciência de tudo que estava acontecendo lá e, finalmente, agora as coisas estão começando a mudar”.
Crianças Yanomami em situação mais grave estão sendo levadas para Boa Vista, onde podem receber melhor tratamento. Na última semana, a prefeitura de Boa Vista informou que o Hospital da Criança Santo Antônio (HCSA), teve 703 casos de internações de crianças Yanomami, em 2022. Até semana passada, 62 indígenas estavam internados. “Desses, 46 são crianças Yanomami e cinco estavam na UTI. No período de 16 de janeiro a 25 de janeiro, foram registradas 47 internações de indígenas, dessas, 30 de Yanomami”, explicou o hospital.
Foi no HCSA que o pediatra Ricardo Frota relatava, num misto de espanto e horror, o grave quadro de desnutrição de um bebê de um ano e quatro meses. Se fosse sadio, deveria pesar 12 quilos, mas Frota não podia acreditar no que via: “Ele pesa quatro (quilos) ponto 300 (gramas)”, em relato ouvido pela Amazônia Real na unidade hospitalar.
Desde domingo (29) e até quinta-feira (2), uma missão do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania está em Boa Vista para apurar se houve omissão do Estado brasileiro, no governo Bolsonaro, em relação à crise humanitária que atinge o povo Yanomami. No encontro, os integrantes da comitiva ouvirão lideranças locais que estejam ameaçadas com a possibilidade de incluí-las em uma rede de proteção.
O ministro da Justiça, Flávio Dino, já usou a palavra “genocídio” para se referir à atual crise humanitária dos Yanomami. Foi nesta TI o único caso de genocídio julgado até hoje no Brasil pelos assassinatos de 16 indígenas por garimpeiros, em 1993. Homologada com 9,4 milhões de hectares, em 1992, com limites entre Amazonas e Roraima com a Venezuela, a TIY viu o garimpo ser retomado a partir de 2016, causando graves violações aos direitos indígenas, como denunciado pela Amazônia Real na série Ouro do Sangue Yanomami, e de forma acelarada nos últimos quatro anos, já sob Bolsonaro.
Sem proteção
Agora que os apelos de profissionais de saúde e entidades de defesa dos povos indígenas começam a ser ouvidos surgem informações de que os órgãos federais, na gestão de Jair Bolsonaro (PL), deixaram os indígenas sem a mínima proteção. O Ministério Público Federal (MPF) investiga, após denúncias de líderes indígenas e profissionais de saúde, que o Dsei Yanomami promoveu um desabastecimento generalizado no Território Indígena (TIY). O MPF já detectou um esquema corrupto de nomeações e compra de medicamentos. Em novembro, o órgão e a Polícia Federal realizaram a Operação Yoasi, afastando agentes públicos e responsabilizando empresários.
“Vivíamos pedindo socorro. Eu saía e passava um tempo aqui (Boa Vista) tentando contato com alguém para conseguir doação de remédio e os órgãos que eram responsáveis por fornecer a medicação não estavam se importando muito. Foi uma fase muito difícil que a gente enfrentou”, revela Gabriela Mafra. Mas o quadro devastador vai além da falta de comida e de medicamentos básicos.
Gabriela lembra que, há quatro meses, atendeu um indígena ferido com um tiro. “Nós tivemos que improvisar um tratamento no paciente. Ele teve um hemotórax [que é presença de sangue no tórax]. Eu tive que fazer uma drenagem de tórax lá, colocar um tubo no paciente. E a gente não tinha também este material, então foi improvisado, a gente encontrou uma mangueira aleatória lá, fizemos tudo improvisado, para poder salvar a vida desse paciente”, conta a médica, revelando que neste caso, a vítima, indígena, foi alvejada por um outro indígena. “Eles conseguem munições com os garimpeiros.”
Impacto cultural
A invasão de garimpeiros no TIY trouxe uma série de modificações no próprio modo de vida dos indígenas. “É muito triste ver, às vezes, um indígena consumindo pornografia, ver um indígena com IST (Infecções Sexualmente Transmissíveis), ver um indígena ser usuário de droga. Você vai numa comunidade fazer uma visita e você encontra garrafa de cachaça. Eu acredito que a presença do garimpo já impactou de forma negativa, em todos os aspectos, tanto na saúde quanto na cultura”, explica a médica Gabriela. Ela revela ainda que há casos de exploração sexual das indígenas por garimpeiros, além da própria inserção do indígena na dinâmica do garimpo. “Eles [garimpeiros] colocam o indígena para trabalhar para eles, o indígena vai receber, e o indígena vai gastar ali dentro do próprio garimpo. Eles têm uma vendinha lá, tem as moças que trabalham lá.”
O drama humanitário dos indígenas de Roraima, principalmente das crianças Yanomami, foi amplamente documentado na “Pesquisa sobre os determinantes sociais da desnutrição de crianças indígenas de até 5 anos de idade em oito aldeias inseridas no Dsei Yanomami”.
O estudo foi feito a pedido da Hutukara Associação Yanomami, que queria obter um diagnóstico da situação de saúde, nutrição e de contaminação ambiental dos Yanomami. Os pesquisadores responsáveis pelo estudo são Paulo Cesar Basta e Jesem Orellana, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). O estudo foi financiado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
“Encontramos uma proporção de crianças menores de cinco anos com desnutrição crônica num nível extremamente absurdo, incomparável com o que se vê no restante do Brasil, inclusive do Brasil rural, do Brasil interiorano, do Brasil ribeirinho, do Brasil que remete à década de 60, 70, de 40 a 50 anos atrás”, revela o pesquisador Jesem Orellana.
A coleta de dados foi feita entre dezembro de 2018 e fevereiro de 2019, nas regiões de Auaris e Maturacá, no Dsei Yanomami, o que mostra que o governo brasileiro tinha conhecimento da grave situação dos indígenas. No trabalho de campo feito por Paulo Cesar Basta e Jesem Orellana, um total de 304 crianças menores de cinco foram examinadas, sendo 80 delas provenientes do território de Auaris; 118 de Maturacá; e 106 de Ariabú.
Um dos dados alarmantes mostra que o drama da fome já começa antes mesmo do nascimento das crianças, com suas mães, passando por restrições alimentares. É o caso que acontece no território de Auaris, onde 90% das gestantes passaram por restrições alimentares.
Enquanto em Ariabú e Maturacá, pelo menos 80% dos indígenas conseguem comer arroz e feijão, em Auaris, os indígenas praticamente não têm acesso a esse tipo de alimento. Nesta localidade, metade das crianças tiveram pneumonia, e 30% delas haviam tido problemas com diarreia nas últimas 48 horas da época em que a pesquisa foi a campo. Já no que diz respeito à desnutrição, a pesquisa mostrou que 81,2% das crianças menores de 5 anos apresentaram baixa estatura para a idade, 48,5% baixo peso, e 67,8% anemia.
Ainda de acordo com a pesquisa, as maiores prevalências de baixa estatura e baixo peso para a idade foram registradas na região de Auaris, onde 88,3% e 70,9% das crianças apresentaram esse diagnóstico. Jesem Orellana já havia denunciado uma possível transmissão da desnutrição crônica intergeracional entre os Yanomami, conforme divulgado pela Amazônia Real.
Garimpo e genocídio
Orellana não tem dúvida de que “o garimpo é um dos aspectos da degradação ambiental que tornam esse cenário trágico, esse cenário cinematográfico de terror dos Yanomami possível, porque você acaba vendo uma situação de destruição do ecossistema que esses indivíduos vivem e sobrevivem”.
O pesquisador ressalta que o problema com a contaminações dos rios, das nascentes de rios, o desmatamento ilegal [além do próprio garimpo] colaboram para formar um cenário que, em pleno século 21, nos remete aos piores tempos dos campos de concentração nazistas, na Segunda Guerra Mundial.
“Você imaginar uma cena dessa lá na Idade Média, talvez antes do Egito antigo, ou algo assim, é uma situação que você pode até interpretá-la à luz da história, sem todo o acúmulo do conhecimento científico, tecnológico, médico que nós tivemos ao longo de pelo menos 10 mil anos de existência da humanidade na terra. Agora, você presenciar essa cena, em pleno século 21, em um País como o Brasil, que produz tantas riquezas mineiras, agrícolas, industriais, é algo realmente inadmissível, algo inaceitável, que caracteriza negligência, abandono, e em último grau, a pior das classificações jurídicas para este tipo de desassistência, que é o tipo do crime do genocídio”, dispara Jesem.
Para o pesquisador, o que vem acontecendo no Brasil com o povo Yanomami exige uma relação direta, com o que é preconizado no estatuto de Roma para classificar genocídio. “Eu não tenho nenhuma dúvida de que se trata de genocídio, então, para quem duvidava, quem não entendia o conceito de genocídio (…) o caso dos Yanomami é algo que você não pode ter dúvida a menos que você não conheça, que você não leia, não entenda o espírito do Estatuto de Roma”, opina.
Extermínio histórico
Trabalhando há 41 anos com saúde indígena, o médico Douglas Rodrigues, de 67 anos, atuou na linha de frente na primeira grande invasão ao território Yanomami no final dos anos 1980 e início da década de 1990. Para ele, a invasão daquela época guarda semelhança com o que se vê hoje, porque naquele tempo também houve incentivo governamental.
“Boa Vista chegou a ter o aeroporto com o maior tráfego aéreo do País. Então, a malária começou a se espalhar, outras doenças, aí talvez não tinha tido a proporção, àquela época, do que eu estou vendo hoje, mas foi uma coisa semelhante, e que só foi descoberta porque alguns profissionais que estavam na área acabaram denunciando”, recorda.
O enfrentamento ao garimpo nesta época foi o que deu origem à criação do Dsei Yanomami, em de 11 de abril de 1991. Para Douglas, o problema do garimpo tem solução, mas necessita de “vontade política”. “O que está acontecendo agora já aconteceu. E quando a gente fala com alguns Yanomami, o Davi (Kopenawa) mesmo muitas vezes fala que o território nunca esteve totalmente livre de garimpo. De vez em quando tem esses surtos, esses aumentos. É possível resolver essa situação? Eu não tenho dúvida de que é, eu sei que não é fácil, que esse número imenso de pessoas, e a rede é muito grande, o preço do ouro tá alto, eu sei disso tudo, agora também sei que a proteção do território indígena é dever do Estado (…) agora precisa de vontade política”, analisa.
Para a médica Gabriela Mafra, é preciso acabar com a ideia de que garimpo é algo “cultural”. “Ouvi esse absurdo: garimpo é cultura. Meu pai era garimpeiro, inclusive o meu avô também era garimpeiro, e é realmente algo que é histórico, eu acredito que muitas coisas aconteceram devido a isso, mas não dá mais para usar como desculpa. O garimpo deve ser desvinculado de algo cultural, porque tem muita gente que não tem noção do potencial de destruição que o garimpo tem”, analisa a médica.