Notícias
18/09/2024 - Especialistas questionam efetividade da Política Municipal de Atenção Integral a Crianças e Adolescentes em Situação de Rua
12/09/2024
Em São Paulo, movimento composto por vereadores e entidades que atuam pela infância pedem que a prefeitura leve em consideração os pontos pactuados com a sociedade civil para regulamentação da política municipal de atendimento a crianças e adolescentes em situação de rua.
Apesar de sancionada, a Política Municipal de Atenção Integral a Crianças e Adolescentes em Situação de Rua e na Rua (Lei 17.923/23) precisará de mais definições e ações em seu decreto para que traga avanços significativos. Essa é a avaliação de especialistas da sociedade civil que atuam com o movimento da infância denominado Criança de Rua Tem Pressa.
A partir do reconhecimento da rua como espaço de violação de diretos e de risco extremo, a legislação prevê serviços e equipamentos novos ou aperfeiçoados de diversas secretarias atuando de forma sistêmica e complementar. Todos voltados ao atendimento de crianças e adolescentes que vivem nas ruas de São Paulo de modo permanente ou intermitente, em logradouros públicos e áreas degradadas ou que usam esses locais como espaço de sobrevivência e trabalho. Porém, o decreto que regulamenta a lei (Decreto nº 63.439/24), publicado em 24 de maio, não especifica de que forma funcionarão esses serviços.
“O papel de um decreto é normatizar a lei para que ela seja concretizada. Esse decreto não só deixa de responder a essa necessidade como também traz o que já existe no atendimento à criança e ao adolescente em situação de rua hoje. É mais do mesmo e, portanto, insuficiente”, avalia Sueli Camargo, advogada, assistente social e coordenadora da Pastoral do Menor da Arquidiocese de São Paulo.
Pacto rompido
A Lei 17.923 foi sancionada em abril do ano passado, acompanhada pela determinação de que a nova política municipal fosse implantada pela Prefeitura de São Paulo em até 120 dias. De agosto a outubro, a Secretaria de Governo organizou reuniões sistemáticas com uma comissão representada por organizações sociais que advogam pelo direito de crianças e adolescentes em situação de rua, dentre elas a Cidade Escola Aprendiz, a Pastoral do Menor da Arquidiocese de São Paulo e a Rede de Diálogos Intersetoriais da Região Central.
Também participaram das reuniões as Secretarias do Trabalho, da Assistência, da Saúde, da Educação, de Espertos e Lazer e de Cultura, além de Conselheiros Tutelares, em um esforço para aprofundar o olhar para a proteção integral dessa população.
Dentre os detalhamentos pactuados na minuta construída nas reuniões estavam a criação de Núcleos de Convivência para crianças e adolescentes em situação de rua e na rua. O Núcleo seria formado pela gestão conjunta de três serviços: Serviços Especializados de Abordagem Social (SEAS) com atendimento 24 horas, Centro de Referências e Serviço de Acolhimento Institucional (Saica), com técnicos de referência para abordagem especializada e individualizada para esse público.
“Nós saímos muito satisfeitos com a minuta, a maioria das sugestões colocadas pelos representantes da sociedade civil foram acatadas. Nossa expectativa era que esse decreto viria coroar a experiência de construir uma política pública com processo participativo e negociado. Só que além de demorar mais de um ano para sair, o decreto publicado ficou quase como uma reprodução do que a lei já apresentava, sem definir prazos e dar detalhamentos para a criação de diversos serviços. Do jeito que está, não vamos avançar”, afirma Miriam Tronnolone, assistente social e integrante da Rede Diálogos Intersetoriais da Região Central.
Um projeto construído a muitas mãos
A Política Municipal de Atenção Integral a Crianças e Adolescentes em Situação de Rua e na Rua está baseada no Projeto de Lei (PL) 253, apresentado em abril de 2021 pelos vereadores Juliana Cardoso (PT), Elaine do Quilombo Periférico (PSOL), Luana Alves (PSOL), Eduardo Suplicy (PT), Carlos Bezerra Jr. (PSDB) e Professor Toninho Vespoli (PSOL).
Mas a luta por uma política municipal que enfrente as violações de direitos dessa população começou em 2014, encabeçada pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) e pelo Conselho Municipal de Assistência Social (COMAS).
O documento que subsidia essa proposta foi construído a partir de diagnósticos baseados em diversas audiências públicas e entregue ao poder público em 2018. Uma grande inovação foi fazer boa parte dessas audiências nas ruas, com palco e tendas lúdicas e microfone aberto para que crianças e adolescentes em situação de rua pudessem falar sobre o que queriam e precisavam.
Apesar do fôlego inicial, a Pandemia da Covid-19 chegou sem que a proposta saísse da gaveta, agravando uma situação que já era difícil. “Era uma conjuntura de abandono total de um grande número da população. Em vez de meninos e meninas em situação de rua, começamos a ver famílias inteiras e muitos óbitos, além do fechamento de serviços para atender esse público”, explicou Sueli Camargo. Isso fez com que o movimento da sociedade civil organizada retomasse a pressão para que o documento virasse um Projeto de Lei.
“Nada aconteceu sem muita pressão. Criamos um instagram, cartazes, abaixo-assinado que atingiu mais de 30 mil pessoas, organizamos seminários, diversas audiências públicas, mobilizamos senadores, a câmara municipal como um todo. Ocorreu um processo democrático, mas não foi tranquilo. Foi à base de muita pressão e organização da sociedade que nós fomos ouvidos”, relembra Sueli.
Pressão do Movimento
Estruturada em 38 artigos, a Política Municipal de Atenção Integral a Crianças e Adolescentes em Situação de Rua e na Rua considera como crianças e adolescentes em situação de rua e na rua aqueles com até 18 anos de idade incompletos, “em desenvolvimento com direitos violados, em situação de vulnerabilidade e/ou risco pessoal e social por motivo de rompimento ou fragilidade do cuidado e dos vínculos familiares e comunitários, em situação de pobreza ou pobreza extrema, com dificuldade de acesso ou permanência nas políticas públicas, sendo caracterizados por sua heterogeneidade”.
Segundo Censo realizado pela Prefeitura de São Paulo em 2023, há 3,7 mil crianças e adolescentes vivendo nas ruas da capital, com 66% delas envolvidas com trabalho infantil. Para que essa política municipal tenha efetividade no atendimento dessa população é fundamental que ela seja intersetorial e integre serviços de abordagem, convivência, acolhimento e financiamento.
“A ida para a rua não é de uma vez só e a saída também não. Os poucos serviços que existem hoje não são voltados exclusivamente para crianças e adolescentes, portanto não trazem abordagem especializada, não funcionam. É uma porta giratória, porque a criança entra num serviço, evade, vai para outro e tem seu processo iniciado tudo de novo. O trabalho fica fragmentado porque ninguém conhece a história completa dela e nem se responsabiliza por ela”, explica a assistente social Miriam Tronnolone.
Por isso, a pressão continua para que o decreto aprovado seja revisto. O movimento Criança de Rua Tem Pressa, do qual fazem parte Miriam e Sueli Camargo, já emitiu nota pública, abaixo-assinado, mobilizaram vereadores, notificaram o Ministério Público e realizaram o Seminário Criança de Rua tem Pressa – Decreto N° 63.439/24, na Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP). “O papel da sociedade civil, do cidadão consciente é intervir nessa questão política. Temos que cobrar e seguir com essa luta. Enquanto houver uma criança em situação de rua, a gente vai lutar para fazer valer os direitos dela”, afirma Sueli.
Os serviços para Crianças e Adolescentes
A seguir, você confere a situação dos serviços atuais voltados para crianças e adolescentes em situação de rua e nas ruas e as principais diferenças entre o decreto aprovado para regulamentar a lei e a minuta de decreto construída com a participação da sociedade civil organizada.
Serviços Especializados de Abordagem Social (SEAS)
Como é atualmente
Os poucos serviços especializados em São Paulo que eram voltados exclusivamente para o trabalho de abordagem de crianças e adolescentes foram fechados nos últimos anos ou centralizados no SEAS Misto, que atende prioritariamente a demanda da população adulta em situação de rua e com horário de atendimento das 8h às 22h.
Minuta de decreto construída com participação popular
Estabelece o SEAS voltado para o trabalho especializado para crianças e adolescentes, com abordagem lúdica e metodologia que atenda às especificidades deste público. Além disso, o serviço teria funcionamento 24 horas e metade do quadro técnico ocupado por profissionais do Serviço Social e Psicologia. Ainda, deve ter um técnico de referência para criança e o adolescente de modo a estabelecer vínculo e qualificar o matriciamento dos casos com outras equipes envolvidas no cuidado.
Decreto nº 63.439/24
Não faz menção sobre profissionais especializados e horário de funcionamento do SEAS. Apresenta genericamente que o órgão deve “utilizar estratégias para construir vínculos de confiança com as crianças e os adolescentes (…), bem como realizar orientações para acesso à rede de proteção e garantia de direitos”.
“Crianças e adolescentes que vivem ou trabalham nas ruas precisam de um serviço 24 horas. Além disso, abordar esse público é muito diferente do que abordar adultos. É preciso ter uma linguagem lúdica, trabalhar com jogos, contar histórias e criar estratégias de aproximação e criação de vínculos. Não pode ser uma abordagem esporádica. É só quando você estabelece uma relação de confiança que essas crianças compartilham informações sobre nome, endereço, família, sobre o que está acontecendo com ela”, Miriam Tronnolone.
Serviços de acolhimento e Núcleos de Convivência para Crianças e Adolescentes em Situação De Rua e Na Rua
Como é atualmente
Muitos serviços de acolhimento e convivência que existiam, como o Centro para Crianças e Adolescentes (CCA), foram fechados ou reduzidos com a pandemia. Permaneceu o Serviço de Acolhimento Institucional para Crianças e Adolescentes (Saica), destinado a crianças e adolescentes envolvidos em medidas de proteção, em risco pessoal, social ou em condição de abandono.
Minuta de decreto construída com participação popular
Criação de um Centro de Convivência que ofereça “atendimento em espaços estruturados e adequados, que garantam às crianças e adolescentes acesso à alimentação, higiene e locais para convivência, associados à escuta qualificada, acompanhamento e orientação individual, atividades socioeducativas, trabalho social com as famílias e propostas de encaminhamento e articulação para retorno ao domicílio”. Além disso, tanto os núcleos quanto os SEAS devem ser ofertados de acordo com a demanda regional da cidade e “atuar de maneira integrada com os serviços de abordagem e acolhimento e com outras políticas públicas, bem como com a Vara da Infância e Juventude, quando cabível”.
Decreto nº 63.439/24
Apesar de previsto no 3º parágrafo do artigo 10 da legislação, o decreto não traz qualquer menção aos Centros de Convivência, apesar desses serviços serem imprescindíveis para o atendimento integral de crianças e adolescentes em situação de rua e na rua.
“O Saica hoje não acolhe. A maioria da população de crianças e adolescentes que passam por lá são vítimas de algum abuso, de violência, de abandono dos pais, ou os pais estão presos, ou são bebês ou estão em processo de adoção. Não têm as mesmas características dos meninos e meninas que estão na rua. Essa abordagem diferenciada, que oferece banho, alimentação e convivência são essenciais para um trabalho de intervenção”, Sueli Camargo.
Bolsa Convivência
Como é atualmente
Apesar de importantes para o enfrentamento ao trabalho infantil, as políticas de transferência de renda são poucas e estão se transformando ao longo do tempo. Algumas, como a Bolsa PETI, foram encapadas por outras e se enfraqueceram. O principal programa atualmente é o Bolsa Família, que acontece no âmbito federal e condiciona o recebimento do benefício à frequência escolar.
Minuta de decreto construída com participação popular
Adolescentes que estão no serviço de convivência, a critério do atendimento desse serviço, poderiam ter acesso a um subsídio financeiro (Bolsa-convivência) por tempo delimitado, a fim de facilitar o processo de retorno às famílias ou à comunidade de origem, o fortalecimento de vínculos e o favorecimento da autonomia.
Decreto nº 63.439/24
No Artigo 50, o decreto menciona que a Bolsa-Convivência terá “regulamentação específica, observando o disposto na Lei Orçamentária Anual, na Lei de Diretrizes Orçamentárias e no Plano Plurianual”.
“Em São Paulo, os programas de transferência de renda são sempre insuficientes, comparando nosso custo de vida ao de cidades menores ou do sertão, por exemplo. Porém, ter uma política de renda é fundamental para o enfrentamento ao trabalho infantil, uma vez que essa renda favorece a volta para a família, um caminho de profissionalização e de autonomia. Nós esperávamos que o decreto entrasse nos detalhes de como isso seria feito, valores e atribuísse responsabilidades aos órgãos de competência. Nada disso foi feito”, Miriam Tronnolone.
Coordenação intersetorial
Como é atualmente
A execução de serviços de atendimento a crianças e adolescentes de e na rua estão majoritariamente hospedadas na política de Assistência Social, porém há fragmentação nos serviços e recursos, além de descontinuidades de ações. Não há integração entre procedimentos, fluxos de notificações e encaminhamentos.
Decreto nº 63.439/24
Prevê que a Política Municipal de Atenção Integral a Crianças e Adolescentes em Situação de Rua e na Rua terá seu planejamento e execução acompanhados pelo Núcleo Gestor do Programa Reencontro, composto pelos titulares de sete Secretarias (Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social – SMADS, Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania – SMDHC, Secretaria Municipal de Habitação – SEHAB, Secretaria Municipal da Saúde – SMS, Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico e Trabalho – SMDET e Secretaria Municipal de Subprefeituras – SMSUB.
Minuta de decreto construída com participação popular
Além das sete Secretarias previstas, a coordenação intersetorial municipal para acompanhar a implantação da lei também deveria incluir a Secretaria Municipal de Educação – SME e a Secretaria Municipal de Segurança Urbana – SMSU. Além disso, deveriam ser criados mecanismos de articulação também em âmbito regional.
“Muitas vezes quem está nas ruas são guardas municipais e metropolitanos. Por isso, queríamos que a área de segurança também trabalhasse na mesma diretriz e de forma articulada. E não adianta a articulação acontecer só no âmbito das Secretarias, é preciso que haja uma coordenação também nos territórios, com articulação entre serviços novos e antigos. Essa coordenação intersetorial é um dos maiores desafios que temos, mas sem ela não conseguiremos superar a fragmentação existente”, Miriam Tronnolone.